A DOBRA DO PAPEL DA DANÇA NA RELAÇÃO DE ESTAR COM A CRIANÇA
Entrevista com Uxa Xavier, com as pesquisadoras Paula Petreca e Juliana Z Alves
RESUMO: O presente texto apresenta uma conversa (in)formal, uma entrevista sensível e poética com a pesquisadora Uxa Xavier sobre a trajetória da artista-docente da dança na infância. A abordagem desta conversa passa também pelas problemáticas vividas durante a pandemia nas circunstâncias e as estratégias utilizadas para a criação do projeto daquele momento. A entrevista foi conduzida por pesquisadora ____Paula Petreca_ e _Juliana Z Alves______ e foi realizada em formato online, integrando a série de entrevistas produzida pelo Ladeira a Bausch - Podcast sobre Dança publicado nas plataformas de podcast em 1º de julho de 2021. O diálogo original foi transcrito e é aqui apresentado de modo a documentar e levantar perspectivas da Dança na infância a partir da experiência da artista-docente entrevistada em como a prática pedagógica de estar com as crianças permeia a criação em um ambiente frutífero para a imaginação.
Palavras-chave: Imaginação; Dança; Infância; Ladeira a Bausch – Podcast sobre Dança.
O presente texto, resultante de uma transcriação de entrevista realizada com a artista-docente Uxa Xavier, apresenta uma conversa (in)formal, sensível e poética com a referida artista-pesquisadora. A entrevista, em si, foi conduzida pela pesquisadora Paula Petreca__ e por Juliana Z Alves__, no dia 1º de julho de 2021, no âmbito do projeto Ladeira a Bausch - Podcast sobre Dança – no formato online, integrando a série de entrevistas produzida pelo Podcast em questão. A entrevista foi inteiramente aqui transcrita, possibilitando a documentação e o levantamento de algumas perspectivas da Dança na infância, a partir da experiência da entrevistada, em torno da prática pedagógica de estar com as crianças, o que permeia a criação nas artes do corpo em um ambiente frutífero para a imaginação.
Uxa Xavier atua como artista e pesquisadora de dança para e com as infâncias há quarenta anos. Especialista no Método Laban (Especialização pela USP), diretora do grupo Lagartixa na Janela, professora convidada nos cursos Arte na Educação/ Teoria e Prática Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP e na pós-graduação em Corpo: Dança, Teatro e Performance da ESCH.
Uxa Xavier atua como artista-orientadora no programa Qualificação em Dança Poiesis/Gestão Cultural do Estado de São Paulo, desde 2022. Atuou como coordenadora em projetos públicos como Vocacional Dança de 2008 a 2010 e Iniciação Artística de 2006 a 2008, ambos projetos da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Autora do livro “Mapas para dançar em muitos lugares” (2014)[1] e do e-book “Ir Além”[2].
Para além da conversa simpática, neste encontro, e do compartilhamento de ideias, esta entrevista é uma oportunidade de se discutir as estratégias de ensino e aprendizagem de dança na infância e especialmente sobre o papel do arte-educador em suas abordagens desde seu planejamento até suas práticas.
Essa discussão se aproxima também do desenvolvimento de uma pesquisa de doutorado da autora (1) desta Entrevista, para uma possível dança volitiva desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), especificamente na linha de pesquisa: Linguagem, Corpo e Estética na Educação (LiCorEs).
O diálogo com Uxa Xavier (figura 2) contextualiza questões importantes para este estudo, principalmente na reflexão das estratégias possíveis, por exemplo: a imaginação, o não protagonismo do docente e o planejamento em relação à concretude da aprendizagem do ensino da dança entre o discente e o artista-docente-pesquisador.
Segue a entrevista, transcrita na íntegra.
Juliana - Bem vinda Uxa, muito prazer recebê-la aqui no Podcast Ladeira a Bausch!
Uxa - Muito bom, gente... Muito obrigada pelo convite, estou super honrada, com essa possibilidade de trocas, conversas, prosas.
Paula - Uxa se apresenta pra gente. Quem você é? A gente sempre faz uma pergunta aqui na ladeira que é: Quem é você na ladeira?
Uxa - Escorregando como sempre, em total estado de escorregamento, deslizante. Meu nome é Uxa Xavier, trabalho com as infâncias no âmbito da dança já há 40 anos. Que coisa emocionante... É muito tempo, é emocionante. É uma trajetória de muitas práticas e experiências, muitos corpos que foram me acompanhando nessa vida toda, que não só me acompanharam como me transformaram e me levaram para vários lugares de pesquisa e entendimento de dança. Entendimento de corpo, entendimento do que é infância e que ainda “estou em baixo deslizando”, aprendendo muita coisa com tudo isso. Atualmente, eu não estou mais dando aula, já faz 10 anos que não dou aula, agora como dizem lá no Lagartixa fico mendigando aula quando alguém precisa ser substituído. Não tenho mais turma fixa, mas estou numa situação bem profunda da pesquisa da dança com crianças e espaços abertos, junto com todos os performers do Lagartixa na Janela. Então, estamos aqui encerrando uma nova obra.
Paula - Nessa tua fala, já mudaram minhas perguntas, você falou algo tão importante na sua introdução, você faz dança com criança e não para criança, você não quer comentar um pouquinho isso?
Uxa - Claro que quero... Já na minha prática pedagógica em sala de aula, procuro manter uma relação onde eu não sou a protagonista da aula, mas eu construo uma relação de perguntas, provocações, como que eu vou junto com as crianças descobrindo caminhos. Claro que existe toda uma estrutura, todo um pensamento pedagógico do pensamento em dança; óbvio que não é uma coisa etérea é bem concreta, bem corporificada. Desde que eu comecei a trabalhar era uma coisa assim de estar no estado de coexistência com as crianças; de não me colocar como a ‘dona do saber’, nesse lugar de centralizar, mas eu sempre tive na minha prática pedagógica um lugar de deriva dentro da aula, de entradas e saídas de observações, de troca, de provocações e construções. Isso já era pra mim estado de ‘estar com’ e não chegar e despejar um conteúdo para. Tem sua diferença, então quando resolvi depois de muitos anos que aquele processo de aula que para mim também era um espaço dramatúrgico de criação tinha se esgotado no lugar de pesquisa, eu resolvi ir para rua. Porque eu queria viver outras qualidades de encontro e também uma relação de como que a dança com crianças também pode acontecer no espaço que não seja o espaço do teatro ou mesmo um espaço que ele já está formatado como um espaço pedagógico.
Então, ir para rua já me trazia essas perguntas, esses desafios, porque eu não tinha resposta nenhuma. Sempre que a gente vai entrar em uma pesquisa a gente não sabe o que pode acontecer, coisas muito interessantes podem acontecer, como também pode acontecer que experimentamos um caminho, mas é para outro lugar. Só que nisso se revelou um novo mundo para mim, uma nova possibilidade de encontros e também com certeza um lugar de uma pesquisa de dramaturgia de corpo de dança nesse lugar que é o espaço urbano. Então o ‘com’, na verdade, ele funciona e opera nesse lugar... Será que respondi sua pergunta, Paula?
Paula - Responde e acho que a gente se sintoniza nesse campo aqui. Então, como foi Uxa? Você está finalizando um projeto que aconteceu em época de pandemia; como é que foi a rua com as crianças na pandemia?
Uxa - Não foi, né Paula! Esse projeto foi contemplado pelo edital de fomento e quando ele foi inscrito ainda não tinha a pandemia. Então, quando ele foi contemplado a gente estava em estado de choque com a pandemia, esse corpo assustado. Foi todo um caminho que a gente construiu muito junto. Para entender como que a gente poderia construir esse trabalho e mesmo as várias ações que foram acontecendo ao longo da pesquisa que faziam parte do projeto, porque tinha ação de encontro, de deslocamentos, tinha a deriva, as oficinas com as crianças, a residência com artistas. E aí foi um lugar de ‘vamos ver como é que isso funciona’, como todos nós nesse momento... Eu acho que foi a partir daí, que a gente começou a se mover. Esse projeto tinha claro, como sempre têm os projetos ‘lagartixa’; ele fazia a pesquisa na rua e agora não tinha Rua... Então, a gente foi atrás de uma questão, que foi a primeira provocação que tem muito a ver com a construção dessa dramaturgia: a de que estamos de castigo; o que a gente faz quando a gente está de castigo? O que que as crianças fazem quando elas estão de castigo? O que, no caso, foi desdobrando até chegar na questão: o que que você faz enquanto você espera?
Então, todo esse trabalho foi construído nesse lugar de perguntas para as crianças de alguma forma isso já foi um meio de contato, mas não um corpo, mais com as sensações e as percepções da criança na espera. Então, a gente vai construindo esse primeiro trabalho, porque isso também é um material muito forte do Lagartixa na Janela, que são as nossas memórias.
O que a gente fazia quando estava de castigo ou quando tinha que esperar? Este foi o primeiro dispositivo do trabalho e todo esse trabalho é composto por objetos que é uma coisa totalmente nova para a gente. Então com o que a gente brinca, como que a gente brincava? O que que a gente inventava com os objetos enquanto a gente estava em estado de espera?[3]
Paula - Sou muito sua fã, Uxa e estou achando muito sensível essa escuta da situação de uma não romantização. É o castigo, vamos lidar com isso e conversar sobre isso. Porque eu acho que às vezes o que me afasta do território da infância é esse lugar ‘rosa e azul’, que vai romantizando, que não olha para as questões que geram tensão, que geram frustração. Como se tudo fosse só no âmbito da satisfação...
Uxa - Do prazer!? Porque o que é legal é que até a gente conversou muito sobre isso. Eu, com a minha experiência de duas filhas, que era assim: coloca a criança de castigo para ficar um tempo no quarto, quando você vai dizer que já pode sair do castigo. Negam, porque ali está mais legal. Porque construiu espaços de invenção, estados de invenção. Então, está de castigo, mas tem um monte de coisa, claro que existem várias ‘qualidades’ de castigo. Mas, nós estamos falando de várias qualidades, porque também existem castigos que estão ali no âmbito da violência, que não é o caso, porque a gente não entrou nesse lugar, mas a gente entrou no lugar dessa estrutura. A gente entrou no lugar do que é você estar no estado de espera e o que você inventa neste estado. Acho que isso não é só a criança, a gente também ficou no estado de espera e tivemos que inventar. Muita gente falou em reinventar e foi preciso eu não tentar me reinventar porque nem sei se eu consigo, mas criar outras invenções, abrir espaço para outras percepções e outras invenções... Então, eu concordo, porque a gente se inventa todo dia, então não é só por uma pandemia que a gente vai se reinventar. Pelo menos é o que eu percebo, mas, assim o que que a gente pode inventar nesse estado de suspensão e de espera?
E foi muito engraçado porque depois do processo encaminhado a gente foi conversar com uma criança e perguntei para ele assim: O que você faz enquanto você espera? E ele virou pra mim e disse assim: eu me distraio.
Então: a gente está finalizando esse processo nesse lugar e a gente já fez um compartilhamento com crianças e foi ‘super legal’, mas tudo aqui nesse "devir-tual" como estamos brincando ultimamente. Vamos lá!
Paula – Uxa, você tem acompanhado educadores... Você está acompanhando essa questão com as escolas, porque te ouvindo e refletindo sobre o que tá acontecendo, eu tenho a sensação de que a instituição na escola está muito resistente a inventar nessa pandemia e os educadores estão sendo penalizados de certa forma por isso...
Uxa - Assim, eu tenho tido, sim, diálogos com várias pessoas que me remetem, que me contam como está o estado das coisas na escola. Primeiro o susto e depois tudo é uma questão de uma adaptação enlouquecida, porque tem esse lugar de que "não pode parar". O que é uma doideira, que não pode inventar estar de um outro jeito. Tem que estar com aquele conteúdo, com aquele monte de coisa e como que todo mundo foi se adaptando.
Então, o que eu vejo nesse caminho, a gente já está há um ano e tanto nessa história... É o primeiro processo de exaustão absurda dos professores para entender como é que vai operar e inventar esse jeito. Toda uma revelação social também de crianças que têm computador, algumas têm os seus dentro dos seus quartos e crianças que têm que dividir o celular com o irmão, com mãe, com tia, com tio... Então é uma loucura né? Porque eu estava lendo uma pesquisa da Luciana Hartmann se não me engano... Ela começou uma pesquisa um pouquinho antes da pandemia. Então, uma das questões que foram levantadas em entrevistas com crianças e que era: Mas por que não para tudo? Por que a gente tem que continuar fazendo as coisas desse jeito?
Pensando nessa questão de produtividade que a escola civilizatória tem, a gente sabe que as coisas estão acontecendo de uma forma extremamente fragmentada e como é que isso vai ser? Eu não sei, porque isso é uma coisa que a gente vai entender ao longo do tempo, quais são os efeitos colaterais disso. Pensando mais objetivamente na sua pergunta é claro que tudo isso está completamente ligado com um processo político, porque é todo esse sistema capitalista que precisa se sustentar seja numa escola pública como na escola privada.
Por exemplo, eu vi esses dias uma propaganda na televisão que eu fiquei chocada. Já tinha todo esse aparato tecnológico e pedagógico, então eles estão 10 mil anos à frente. Claro que é uma escola em que, provavelmente, a mensalidade é de 5.000 reais pra mais. [Paula comenta: Sim, já faz um recorte social!]. Exatamente! Isso tudo que a gente está vivendo, a gente só vai entender daqui há um tempo, como é que isso vai reconfigurar, porque as escolas públicas, que a princípio iriam ter tablet para todos os alunos, estes nunca chegaram lá; algumas universidades públicas conseguiram... Sei que a Unicamp conseguiu, algumas outras também conseguiram. Mas isso você já vê que boa parte da população vai entrar no limbo, porque é uma insistência de um projeto que, de repente, não vai funcionar mais. A gente só está lidando com as emergências ainda.
Juliana - Eu estou aqui encantadíssima, me identifico muito. Tenho muitas perguntas, mas eu fiquei curiosa no que você já disse, quem sabe mais para acrescentar ainda mais alguma coisa, que no campo que eu tenho investigado para trabalho com as crianças eu encontrei na manualidade; nesse estado de presença, essa deriva que você falou, para não ser a protagonista da aula, a manualidade foi o que me despertou. Proponho construir corpos com papel, com o fio, linha. Essa é a minha estratégia, te ouvindo eu entendi que a estratégia de ir para rua acabava sendo essa mesma ideia de distribuir a atenção e criar esse não protagonismo, esse estado de deriva. Você tem algo a mais que você levou para rua depois da tua experiência de 40 anos com ensino e aprendizagem da dança com crianças?
Uxa - Quando eu levei para rua ficou mais como um estado de encontro e não como proposições. Porque todo o processo dramatúrgico que o Lagartixa na Janela faz de construção de pesquisa é tudo, sempre, atravessado pelas crianças.
Por exemplo “O varal de nuvens"[4] a gente fez uma parceria com uma escola que ficava ao lado da Praça das Corujas então a gente deu umas oficinas depois a gente levava as crianças para Praça, dançava com eles algumas estruturas que estavam mais organizadas, para ver como é que isso abria espaço de relação. Então, foi mais ou menos nesse lugar, tem uma coisa que é um pouco inverso por exemplo, o que a gente faz que é uma prática do lagartixa, ou seja, a gente trabalha também com oficinas e encontros pedagógicos quem têm as partituras como um dispositivo de uma investigação pedagógica em dança com as crianças. Como que a gente vai trazendo materiais, trazendo proposições, que fazem parte da performance, mas que também é um dispositivo pedagógico de conhecimento, de criação, de invenção em dança. Achei super interessante a forma de corporificar outros materiais nessa situação que você está dizendo e provavelmente depois disso levam as ideias para o corpo.
Juliana - O trabalho com as crianças é sempre um risco; você sempre tem que ser muito inventivo, porque você imagina uma coisa, mas na prática ela pode te surpreender e ser um escândalo que você nem imaginava ou ela pode ser um fracasso total e ir tudo por água abaixo. O que resta é consertar aqueles errinhos no próximo. Queria te perguntar quando algo desconcerta, quando acontece um perrengue em situação que você não estava à espera de uma proposta. Quais são as estratégias para responder a algumas perguntas desconcertantes? Você tem alguma coisa de pronto para lidar com essas situações?
Uxa - Eu não sei se tem ‘de pronto’, mas a gente vai, ao longo do tempo, entendendo qual é a dinâmica das crianças em uma sala de aula. E aí a gente vai ficando esperto. Mas, isso que você tá falando acho que tem muita ver com uma coisa de como a gente pensa e constrói um planejamento de aula e o que você dentro do seu lugar como professora e artista da dança sabe qual é o seu projeto. Cada turma tem uma dinâmica, tem uma cultura, tem um modo de ser na vida. E quando você tenta botar o seu planejamento para várias turmas a casa cai. Mas, como que a gente vai ao longo do tempo entendendo que primeiro se eu estou em relação, a coisa não vai cair, porque eu estou em relação, não estou em uma linha de força: vocês têm que fazer o que eu quero, mas eu estou em relação, então quando ‘rolam os desvios’ eu busco entender: o que aconteceu? Para onde este desvio do planejado levou? Então, tem um texto meu lá bem antigamente: "Põe o dedo aqui"[5] que é um projeto que eu fiz junto com a Georgia [Lengos] que eu falo muito disso... A deriva do professor dentro de um estado de aula; ele tem que entrar e sair.
O estado de observação faz com que você entenda onde aconteceu uma coisa nova que pode levar para lugares super interessantes, ou aconteceu um conflito e que às vezes a gente precisa parar entender qual é esse conflito e como que a gente resolve. Por que isso fundamenta estar em relação, como seus enunciados em dança funcionam nisso.
Por exemplo, nessa aula vou dedicar a trabalhar o espaço, vou construindo vários enunciados; a gente sempre tinha todo um processo de aquecimento que eram repetidos e nessa repetição, se descobria uma nova habilidade. A potência da repetição, não como treino, mas como investigação em dança. Quando trazia um enunciado espacial de dançar em lugares pequenininhos ou expandir o movimento como vai se deslocando, por exemplo, tem crianças que têm uma questão muito séria com a concentração e com a percepção de si e do seu próprio corpo; criança que tromba, que bate, que tropeça e incomoda o outro. Que pode dar confusão, dependendo do número de crianças que tem na sala. Então: como você recolhe isso e traz para um lugar de potencializar a observação do outro? Quantas cartas na manga a gente tem para poder estar em relação? E isso eu acredito muito que é tempo de experiência, mas que sempre colocar a prática da observação. Lembro muito bem de duas alunas, quando eu tinha estúdio, que elas ‘não se bicavam’; elas brigavam o tempo inteiro. Um dia eu resolvi fazer o seguinte: vou colocar as duas para criar uma coisa juntas, claro que ali junto delas perguntando. E de repente abriu uma porta que tinha uma super identidade entre elas, porque eram duas forças muito equalizadas: uma queria mandar e a outra não aceitava. Mas, como que a gente nesse lugar é também lugar de corpo, como é que a gente enxerga o corpo do outro, como que a gente abre isso? E elas fizeram uma coisa muito genial e as coisas entre elas se apaziguaram, porque esse conflito atrapalhava as outras crianças, enquanto elas mesmas se irritavam com essa disputa de liderança. São lugares que só a prática da observação e dos seus instrumentos de leitura do movimento e de corpo que vão te fazer entender essa dinâmica. Agora, se é uma aula onde o professor faz e o aluno repete, isso nem passa percebido, porque a sua disponibilidade é outra, porque nem é visto, a criança nem se coloca, ela fica ali no lugar de ter que repetir para ficar cada vez melhor. Então, são âmbitos muito distintos. Eu vejo que esses elementos, que fui trabalhando durante muitos anos, dialogam com a construção dramatúrgica disso, pelo menos de investigação da dança contemporânea.
Juliana - É muito interessante essa frase da prática de observação para continuar estar na relação! É uma riqueza!
Uxa - Converso muito com os meus alunos dos cursos em que dou aula... Todo planejamento é um processo de criação, se você como educador, seja do corpo, seja nas artes visuais, seja da matemática, seja de todos os âmbitos, planejar é um processo criativo. Então, quando a gente se coloca nesse lugar eu acho que as coisas abrem, as janelas se abrem, porque você se dispõe a estar em relação e não em estado de domínio. Porque cansa ficar tentando dominar.
Juliana - Minha investigação nessa questão da manualidade, e que eu tento defender, é essa ideia de que além de ser uma criação é um estado de uma artesã de uma artífice. [Uxa: que interessante, um diálogo!] Em que você tem que ficar com a mão na massa para não fugir, não escapar da relação.
Uxa - Lembrei do Nicolay ele era marioneteiro, ele era de teatro de boneco...
Juliana - Fiquei com vontade de falar de uma aluna minha que foi o meu perrengue... A ‘aluna’, fazia violino, inglês na escola e seguia para a minha aula. Era uma aula de contra-turno às 18h30, ela já estava cansada, não queria fazer nada, estava exausta. Então, toda aula no aquecimento de balé, todo mundo ‘alinhadinho’ nas barras ou no centro e ela estava dando voltas, correndo pela sala. [Uxa: ela estava dando depoimento dela assim...]. Fiquei a observando e a duas semanas da apresentação eu pensei: como não tinha muita liberdade para fazer cenário, para mudar muita coisa eu só pedi para colocar um balanço em ¼ do palco para a Júlia ficar se balançando e ela amou. Todas as colegas ficaram indignadas: como assim, ela nunca fez nada e ela ganha um balanço? Mas, ela ficou tão feliz e todos os outros fizeram o que escolheram fazer durante todos os ensaios e ela estava inteira, só naquele balanço durante a coreografia e muito realizada. [Uxa - Então: ela estava com, ela não estava ali como algo que não fazia parte, eu acho que é muito importante...]. Foi um aprendizado pra mim e é claro que se eu conseguisse ouvir de cada aluno essa particularidade, pois ela precisou fazer muito porque era uma turma grande e aquela história de contra-turno, fim do dia... E uma escola particular precisa cumprir certas expectativas, mas a conquista desta minha aluna foi muito importante para desconstruir.
Uxa - O que é um pouco o que estávamos conversando. O quanto que a criança também está propondo outras possibilidades e se você não tem os olhos para isso, ela poderia ter saído do espetáculo porque a ação dela não caberia.
Juliana - O balanço acabou modificando todo o espetáculo, permeou todas as outras coreografias. Foi riquíssima a experiência.
Uxa – Então? Mas isso é a prova de como ‘estar com’ também é um processo de criação de quem está dando aula. Quando você está aberto para viver outras provocações que virão dos alunos, porque senão sua aula será sempre igual. E qual é a sua ética em relação à criação e em relação à infância? Está tudo dentro, você leu o que ela disse e de certa forma é sobre criar um outro campo para ela.
Juliana - Especialmente para não responder a algo que não é aquilo que se propõe a arte, a dança. Se eu a oprimisse: Fica aqui ou então saia. Completamente ao contrário daquilo que se propõe exatamente a dança, a arte, o movimento.
Uxa - Exatamente, do errado e do certo. O que é errado? Vamos na errância, vamos errar mais...
Paula - Uxa, a gente tem esse exercício de tentar descrever um movimento, um gesto ou até uma cena de espetáculo. Fazer esse exercício de dançar em palavras... Não sei se você quer áudio-descrever algo do espetáculo atual que ninguém viu ainda.
Uxa - Do atual ainda não, mas posso falar de outros. A gente está agora fazendo uma residência com artistas e com crianças. Então, eu vou descrever aqui uma partitura do "Breves"[6]. A gente trabalhou tanto com as crianças como com os adultos e tem um eBook disponível lá no site do lagartixa para todos os criadores e educadores usarem com as crianças.
Então, vou aqui dançar com o gesto da minha voz a "Partitura das Medidas" que é muito legal: Eu dei 3.500 passos até chegar aqui, meus pés são grandes por isso os meus passos foram mais rápidos. Aqui onde estão os meus pés, passa o Trópico de Capricórnio, que vai se encontrar com o Trópico de Câncer e o meu corpo vai ficar bem no meio entre os trópicos. Quantos dedos cabem no meu corpo e quantos palmos de mão cabe na sua cabeça?
Juliana - Que lindo, fiquei aqui medindo... Criei uma imagem na imaginação de corpos com muitas palmas, uma cabeça com muitas palmas, corpo cheio de dedos.
Uxa - Quem faz é a Tatiana Cotrim e que foi ativada pela memória dela de contar passos enquanto andava na infância. Você pode encontrar esse e-book no nosso site. Lá tem várias janelinhas e tem uma que se chama e-book. Tem a propaganda do "Mapas para dançar em muitos lugares" que é um outro livro que eu criei a partir dos poemas cinéticos... Esse é um livro físico que ainda tem alguns exemplares para serem vendidos e depois eu resolvi fazer um e-book, para disponibilizar para todo mundo. Então, ele está lá e é só a pessoa abrir e usar. É sobre isso que eu estava falando antes Ju; como a própria performance, também ela, se transforma em um material pedagógico de investigação e pesquisa em dança. Chama-se "Ir Além", um material público é para ser usado, brincado, dançado e tudo mais...
Juliana - Que delícia de conversa Uxa, muito agradecida!
Paula - Obrigada Uxa, um prazer te ouvir como sempre!
Uxa - Eu que agradeço meninas, boa dupla vocês duas, maravilha esse projeto que ele tenha muito sucesso e ele que passeie muito por esse "devir-tual" por aí.
REFERÊNCIAS
Breves Partituras para Muitas Calçadas. Projeto derivado do Lagartixa na Janela e, cujo trecho de vídeo, pode ser consultado em: https://www.canalaberto.com.br/index.php?r=clientes/grupo-lagartixa-na-janela-apresenta-breve. Acesso em: 20 fev. 2024.
Lagartixa na Janela disponível em: https://www.lagartixanajanela.com.br/. Acesso em: 20 fev. 2024.
Varal das Nuvens. Projeto derivado do Lagartixa na Janela e, cujo trecho de vídeo, pode ser consultado em: https://www.youtube.com/watch?v=ETcfwNPdg4g . Acesso em 19 fev. 2024.
XAVIER, Uxa. Mapas para dançar em muitos lugares. São Paulo: Editora Patuá, 2014.
XAVIER, Uxa. LENGOS, Georgia. MARINHO, Nirvana. GODOY, Kátia. Dança em Palavras – Reflexões sobre a pesquisa em dança – 2008. In: site/portal MUD – Museu da Dança disponível em: https://portalmud.com.br/museudadanca/acervo-interna/materiais-graficos/e-flyer-danca-em-palavras-reflexoes-sobre-a-pesquisa-em-danca. Acesso em: 20 fev. 2024.
[1] Para maiores detalhes, consultar a obra: XAVIER, Uxa. Mapas para dançar em muitos lugares. São Paulo: Editora Patuá, 2014.
[2] Para maiores informações sobre a obra, consultar o site do coletivo Lagartixa na Janela de Uxa Xavier, disponível em: https://www.lagartixanajanela.com.br/. Acesso em: 20 fev. 2024.
[3] Uxa Xavier se refere a uma performance referente a estas perguntas que se tornaram dispositivos para processo de criação e dramaturgia. As performances do coletivo podem ser acessadas a partir do site: https://www.lagartixanajanela.com.br. Acesso em: 20 fev. 2024.
[4] Varal das Nuvens é um projeto derivado do Lagartixa na Janela e, cujo trecho de vídeo, pode ser consultado em: https://www.youtube.com/watch?v=ETcfwNPdg4g . Acesso em 19 fev. 2024.
[5] Uxa Xavier se refere à publicação que organizou com as autoras Georgia Lengos, Nirvana Marinho e Kátia Godoy, em 2008. Para acesso à obra verificar o site/portal MUD – Museu da Dança disponível em: https://portalmud.com.br/museudadanca/acervo-interna/materiais-graficos/e-flyer-danca-em-palavras-reflexoes-sobre-a-pesquisa-em-danca. Acesso em: 20 fev. 2024.
[6] Uxa Xavier se refere ao espetáculo Breves Partituras para Muitas Calçadas em que constrói relações com o espaço urbano em sua configuração territorial, criando assim um diálogo com o público, que se inicia pela contemplação estética, abrindo espaços para o encontro e interação com as performers. O objeto relacional escolhido para esta performance é o giz, objeto que remete à infância e que cria caminhos ou espaços imaginários e por sua efemeridade, acaba por imprimir rastros no espaço urbano. Para maiores informações, consultar o site Canal Aberto disponível em: https://www.canalaberto.com.br/index.php?r=clientes/grupo-lagartixa-na-janela-apresenta-breve. Acesso em: 20 fev. 2024.