No início, era a criança.
Georgia Lengos
Do início
Por onde começar?
Como falar do nascimento... de como tudo começa?
O que te move, comove, inspira e resulta em algo concreto, para além de você...
Uma paixão, talvez um ideal ou uma inspiração repentina.
Quem sabe?
São muitas camadas que se sobrepõem formadas por desejos, ideias, lacunas, emoções, pensamentos e vontades individuais que por vezes ressoam no/num coletivo. Camadas que se entrelaçam no tecido que forma nossa própria vida que compõem e também são compostas por tudo que fizemos ou, que não fizemos.
Em um determinado momento, elas simplesmente viram, resultam disso tudo ou tornam-se algo, e foi você quem deu o pontapé inicial para nascer.
Da Inspiração:
Inspiração tem como significado tanto o movimento de levar o ar aos pulmões, sendo um dos movimentos do ciclo da respiração, condição para vida acontecer, como também uma vontade ou ideia que surge de súbito, repentinamente e que leva a uma criação.
Quando nascemos esse inspirar do ar é um primeiro movimento e contato com o mundo externo: com a vida fora do “mar materno”. Nesse momento deixamos o meio líquido e o nosso “ser peixe”. Agora, respiramos o ar. A imagem do ar como primeira troca com o ambiente ao nascer evoca em mim a imagem/expressão de “um sopro da vida” - ainda que a vida já estivesse acontecendo...
INS PIRA AÇÃO também me remete a algo do mundo externo que é absorvido por nós e que é transformado dentro -INS-: esse ar/ oxigênio que é transformado em energia e que possibilita a vida e o movimento. Em seguida, PIRA que significa chama: que queima, também transforma. Ao mesmo tempo PIRA é peixe em Tupi - Guarani (há quem diga que somos todos peixes, ainda mais ao nascermos...). AÇÃO, por sua vez, agrega a manifestação de uma força ou um movimento.
Palavra boa essa!!!
E então, como começa?
Acredito que comecei a fazer dança contemporânea para e com crianças porque amo o movimento e as infâncias. Adoro ver as crianças moverem.
Adoro suas descobertas corriqueiras; esse pensamento sincrético que pode dar em mil relações e possibilidades; as soluções nada óbvias e as proporções do corpo - que vão se modificando visivelmente ao longo do tempo - e que são tão imprescindíveis para poder estar bem próximo ao chão, e no ar, quase que ao mesmo tempo! Admiro também a forma direta como algo lhes toca: uma música, uma dança, um afeto, sem a necessidade de explicação e suas respostas tão genuínas sejam elas verbais ou corporais. Amo igualmente a dança. Ver, dançar, pensar e criar.
Então, começa do movimento...
Ou do amor?
Ou, da criança.
Das crianças que conheci, a criança que fui e, a que não fui também.
Tá. No início, a criança.
A criança foi o primeiro motivo que me impeliu a soprar esse trabalho que tenho feito e que acredito ser potente para transformar pessoas e visões/percepções de mundo. Visões que sejam mais sensíveis e mais próximas da experiência genuína de sermos corpo.
Pensando em um mundo “melhor”? Sim.
Minha porção utópica e idealista já acreditava nisso muito antes de ser mãe natural, o que só aconteceu 13 anos após o nascimento da Balangandança Cia.. Nascimento esse que contém uma pitada de esperança. Poderia falar bem mais sobre isso, mas o fato é que me interessa/ava contribuir para as infâncias: fase determinante da vida onde várias conexões são despertadas e em que, acredito, as experiências permanecem inscritas no corpo.
Estar junto e trabalhar com e para elas significa presentificar mais e mais a vida hoje e também acreditar no futuro.
Proporcionar espaços e possibilidades de sentir, perceber e agir no movimento.
Sem expectativa de retornos imediatos ou egóicos, é um tipo de entrega que (me) absorve e remete às nossas próprias trajetórias, memórias e questionamentos de o que, o como e o pra que estamos direcionando o que fazemos por aqui, nessa vida e planeta. É responsa...
O movimento gera movimentos...
Desde jovem sempre gostei de observar a movimentação das crianças e sua ocupação inusitada do espaço. Em minhas viagens, passeios e em situações do dia-a-dia me chamava atenção seu movimento e a diversidade de brincadeiras espontâneas, de jogos corporais e sua organização: tanto espacial quanto das relações entre elas. Como surgiam, desenrolavam, transformavam-se ou simplesmente findavam.
Em sua corporalidade, um misto de prontidão, inteireza e espontaneidade que - para além das brincadeiras, mas também no próprio movimento cotidiano - me interessavam enquanto observadora/ expectadora, e que foi conquistando também a artista de dança contemporânea que me tornei.
Nos jogos, a presença de estruturas ou regras davam o contorno, mas também permitiam a liberdade do movimento e de todas as relações cognitivas, sensoriais e perceptivas que eles -os jogos envolvem. Regras que muitas vezes eram inventadas, combinadas ali, na hora, pelas próprias crianças acompanhadas por um conjunto de ações e/ou reações emocionais.
Para além de gostar, o que eu via era dança.
Assim eu enxergava. (ainda enxergo).
Uma dança improvisada, expressiva, inusitada. Por vezes com regras, por vezes sem, mas muito similar às práticas de dança que eu como dançarina exercitava. Nas regras dos jogos infantis enxergava e estabelecia paralelos com a Improvisação, treino fundamental que praticava como integrante e colaboradora das Cia Nova Dança (1994-2000), período em que tive contato com grandes mestres improvisadores como por exemplo, Tica Lemos, Katie Duck, Davi Zambrano, Karen Nelson.
Ainda nesse sentido, alimentava meu corpo com técnicas que envolviam direta ou indiretamente a educação somática como a de Nova Dança e Improvisação. Tive contatos com diversas como Alexander, Feldenkrais, Eutonia, Klauss Vianna, algumas ainda antes de cursar a faculdade de dança na Unicamp e outras após já com o estudio Nova Dança criado em 1995, como o BMC, por exemplo e posso dizer foram divisores de água na minha trajetória.
Permaneceram também no meu “treino” junto à Cia Oito Nova Dança, a qual integrei (2000-2011) sob o olhar de Lu Favoreto a partir dos estudos de Marie-Madeleine Bezièrs & Iva Hunsinger sobre Coordenação Motora e sempre fizeram parte do desenvolvimento das minhas investigações pessoais e de estratégias e conteúdos no meu fazer didático, como por exemplo como professora do Colégio Oswald de Andrade onde lecionei no Fundamental 2, por 11 anos, criando um currículo de Dança que envolvia a Educação Somática, Dança Contemporânea e Danças Populares Brasileiras.
Técnicas somáticas estas que buscam trazer um corpo mais consciente, conectado e presente, disponível, permeável e com identidade: características estas que reconhecia ao ver as crianças se moverem.
Ao mesmo tempo, estas técnicas incluem a imagem e o imaginar (além do sentir, perceber, etc.) em suas práxis o que me fez ver mais e mais sentido em trazê-las mais e mais também para o desenvolvimento de uma linguagem corporal que comecei a pesquisar na Balangandança Cia.. Trazem também um conhecimento/consciência profunda do corpo o que necessita, por vezes, silenciar o movimento no espaço externo, para perceber o “dentro”.
Sobre esse “silêncio”, me encantava igualmente observar as brincadeiras mais “quietas”, embuídas da presença e de estados mais contemplativos por vezes, repletas de imaginação e invenção.
Assim, no meu entendimento era claro que a linguagem dessa dança e criança eram próximas ou posso dizer que combinavam.
Isso me moveu...
O contexto da dança e da educação.
Já na faculdade (1991) comecei a dar aulas intituladas de Dança Criativa no Parque Itajaí - periferia de Campinas. Depois de lá, foram muitos e muitos lugares, em periferias de São Paulo ou não, experimentando e desenvolvendo modos próprios desse “ensinar”.
Nesse tempo, percebia que as crianças, por vezes, não reconheciam o que aprendiam como Dança. Não só porque o Ballet Clássico, o Forró e o Hip Hop era o que fazia parte de seu repertório naquele momento, mas também porque nunca haviam visto uma obra de Dança contemporânea e, mais que isso, nunca haviam visto uma obra de dança que vinculasse sua temática (seja ela assunto ou corporalidade) às suas vidas ou interesses específicos.
Como seria se tivessem obras de dança contemporânea voltadas para as infâncias? Seria uma forma de produção de arte e acesso à cultura, seria uma maneira de oferecer outras possibilidades - de dança e corpo - para as infâncias fora dos padrões midiáticos, contribuindo ao mesmo tempo para formação de público. E por que não???? Isso me moveu...
Dança contemporânea para, com, junto às infâncias: como?
A possibilidade investigativa, de pesquisa no sentido da fisicalidade, composição, dramaturgia e tudo a que se refere uma criação de obra, juntamente com essa lacuna gigantesca que existia, pois não havia nenhum grupo, coletivo ou companhia. - que se dedicasse a esse público, somado aos meus ideias enquanto artista dançarina e enquanto educadora de crianças, me moveram a convidar quatro artistas, parceiros da dança e amigos a criar a primeira obra e constituir a Balangandança Cia. em 1997.
O convite foi para mergulharmos, brincarmos e criarmos de maneira despretensiosa. Não sabíamos no que iria resultar, mas acolhemos nossas infâncias, nossos brincares e o que cada um trazia desse universo, tanto pessoalmente quanto em suas práticas de ensino e de dança.
Lilian Vilela, Anderson do Lago Leite, Cristian Duarte e Dafne Michellepis toparam essa aventura e juntos descobrimos coisas incríveis, entre elas um grande prazer de estar, criar e apresentar para e com esse público.
A ideia era “falar a linguagem corporal de criança” e para pesquisar o que isso seria era fundamental estar junto ou próximo da criança. Não para criar personagens ou imitar, mas muito pelo contrário, para estabelecer trocas, perceber mais de perto suas dinâmicas e que/qual brincadeiras aconteciam sem que estivessem direcionadas por um adulto ou educador. Nessa ocasião, 1997, fiz uma pesquisa como observadora de brincadeiras espontâneas em escola e parques da cidade de São Paulo. Estas me deram subsidio enquanto diretora para propor técnicas expressivas: desenvolver propostas para que os artistas chegassem em estados corporais diversos incluindo os lúdicos, criassem os repertórios de movimento e se desenvolvesse a pesquisa cênica.
Na proximidade com as crianças foi fácil perceber que muitas brincadeiras que eu conhecia, não aconteciam mais. Isso revelou a importância do resgate de outros brincares, vindos das memórias dos bailarinos, mas também de buscar e conhecer outros repertórios de brincadeiras de culturas diversas. Para além das brincadeiras outros eixos nortearam o trabalho, mas em síntese, nesse início: brincar-memória- resgate -som & movimento.
Simultaneamente, elenquei muitas produções voltadas ao público infantil como peças teatrais, literatura, música e brinquedos. Nesse processo, ler e conhecer teoricamente sobre essa fase da vida foi essencial e concluindo, optar por oferecer algo diferente do que se apresentava para a infância nos sentidos sensoriais, estéticos, temáticos, corporais e da dança era cada vez mais um desejo, uma necessidade e uma busca investigativa.
Enquanto temática, a relação da passividade do corpo com relação as telas - naquele momento com relação à TV - e a perda de espaços de convívio entre as crianças nas grandes cidades era o que gostaria de trazer à tona (imaginem agora!!!). Daí: como redescobrir o corpo, suas inúmeras possibilidades de dançar, mover, brincar e se relacionar com o outro, foi a temática abordada em Brincos & Folias, nossa primeira obra artística de 1997.
Foi tão especial, que esse trabalho continua sendo apresentado até hoje e continua “atual”.
Brincos & Folias (1997) – Inauguração do SESC Vila Mariana
Na foto: Anderson do Lago Leite, Cristian Duarte, Dafne Michellepis e Lilian Vilela.
Foto: Gil Grossi
Depois desse começo, foram muitas outras obras que sempre trataram de temas acerca do corpo e sua relação com o espaço, a imaginação, a memória e a inventividade. Cada obra com temáticas e características investigativas próprias, mas de alguma forma, todas elas trazendo luz para assuntos pertinentes e discutidos sobre a infância e corporalidade. Das danças populares brasileiras, ao espaço do quintal, à relação entre mãe e filho, por exemplo, e mais atualmente - nos últimos 10 anos - a relação intrínseca entre corpo, ludicidade e natureza.
Nesse caminho todo a criança sempre esteve junto, seja durante o processo ou parte dele e na obra resultante de diferentes formas de participar e co-criar: maneiras que foram descobertas coletivamente a cada processo vivenciado. E isso feito num trânsito constante entre práticas e teoria e entre processos criativos e desenvolvimento de estratégias de ensino. Uma trajetória rica de experiências, contatos, aprendizados e criações.
Ninhos, performance para grandes pequenos (2013)
Na foto: Anderson Gouvêa e plateia
Tudo muito especial, mas faz-se importante dizer que esse começo - com o Brincos & Folias, mas não só - não foi nada fácil: abrir caminho nas programações infantis, por exemplo, pois não existia programação de dança para crianças. Concorrer nos poucos editais que existiam na época lembrando que o primeiro Edital do programa de Fomento à Dança, especificamente foi criado em 2007, em que a cia. já tinha 10 anos e 05 produções...Daí foi tempo de muiuuuuto trabalho e dedicação não remunerados, mas com um coletivo que topava o desafio. No Brincos & Folias, por exemplo, não teve nenhuma verba, edital ou algo parecido...tudo feito como investimento pessoal e com nossos desejos nos movendo. Demorou um tempo grande para aparecerem programações específicas e outros grupos/coletivos interessados em se debruçar especificamente para isso.
Ao mesmo tempo os assuntos que tratávamos não eram tratados com tanta relevância como o são agora, por exemplo: a importância do brincar, a relação entre espaços e corporalidade na cidade para as crianças, a importância do contato com a natureza nas/para as infâncias e a problemática atual com relação ao mundo digital com relação ao desenvolvimento corporal, mental, emocional infantil ou posso arriscar, humano.
Nesses anos estabelecemos parcerias queridas com o Na Dança - concebido por Uxa Xavier, em 2007 e também com instituições como o Itaú Cultural, Sesc São Paulo e Instituto Alana, entre outras, para desenvolver projetos e/ou acolhê-los. Incluímos desde sempre ações formativas e de fomento ao assunto, que incluíam oficinas para crianças e educadores. Em 2010, criamos o Forinho: o brincar, a Improvisação e a Dança para crianças, um fórum de discussão para expandir o alcance do assunto e fomentar a criação de outras produções. O Forinho teve como intuito ser um ponto de encontro entre profissionais ligados à infância: artistas, educadores, pensadores.
Pois então, essa chama, essa PIRA que começou lá atrás continua acesa nos transformando. Nesse tempo a companhia também se transformou mesmo enquanto composição, mas o que nos sustenta a continuar existindo - e resistindo muitas vezes - está em sua fundação:
corpo, relações, danças, imaginação, memória, brincares, vínculo, conhecimento, conexão, criação.
Acredito continuar sendo urgente estar e criar junto, com e para crianças. E cada vez mais tocar nas crianças dos adultos a fim de sensibilizá-los também para a potência do brincar, da imaginação, ainda que trazendo assuntos complexos ou difíceis, revelando sua incrível importância em nossas vidas e oferecendo danças ou experiências artísticas voltadas para a educação da sensibilidade. A alteridade e/ou a empatia, o estabelecer vínculos e a certeza de que somos corpo, são ares combustíveis para esse fazer arte.
Assim como o momento do nascimento, os inícios são importantes e especiais.
E as histórias envolvidas em nossos fazeres sempre são. Constituem-se como memória.
Somos corpo e ao mesmo tempo somos tempos variados.
Nesse relato, deixei de lado a criança que fui, e a que não fui também.
Talvez tudo tenha começado nela.
Presente! feito da gente (2018)
Na foto: Alexandre Medeiros, Clara Gouvêa, Ciro Godoy, Isabel Monteiro, Alan Scherk.
Foto: Gil Grossi
Agradeço muito Uxa a você e ao Lagartixa na Janela por essa trilha em que nos encontramos tantas vezes e pela oportunidade de escrever esse relato. Toda admiração por seu trabalho.
Agradeço também aos integrantes da Balangandança Cia. - de todos os tempos - que construíram/oem essa trajetória: Dafne Michellepis, Coré Valente, Alexandre Medeiros, Clara Gouvêa, Ciro Godoy, Isabel Monteiro, Jeean Salustiano, Maristela Estrela, Anderson Gouvêa, Alexandre Cicconelo, Lilian Vilela, Anderson do Lago Leite, Heloisa Domenici, Alan Scherk, Sabine Maurien e Cristian Duarte.