Do corpo à dança: espaços de investigação e invenção
Uxa Xavier
Texto apresentado no Festival de Joinville
Abertura do Seminário de Dança/ 2017
“1,2,3 e já! A criança pinta borda e dança! “
A criança seu corpo e a dança, esses três assuntos fazem parte de minha existência como artista e pesquisadora, e também integram minhas memórias.
A escrita deste texto será bordada por minhas memórias de corpo-infância e a pesquisa e construção de conhecimento que desenvolvo no território da dança para crianças.
Corpo/Memória
Quando revisito a biografia do meu corpo, as sensações se atualizam e as lembranças resplandecem como um raio de luz numa noite escura. Lembro-me muito bem que adorava buscar espaços mínimos para me encaixar e por lá brincar de “ser solidão”. Mesmo estando envolvida com o meu estar só percebia os passos e ouvia as falas das pessoas que habitavam a minha infância.
No meu mais precioso esconderijo, eu observava e me sentia presente diante das sensações e percepções sobre o mundo ao qual eu pertencia. O corpo esperto de criança registrava tudo, percebo que meu corpo é ainda meu melhor caderno de anotações onde posso recorrer às minhas lembranças.
Corpo/Envolvimento
Ser criança é estar envolvido, presente e perceptivo ao mundo que lhe pertence e lhe envolve. Uma relação dinâmica entre o estar e se deslocar.
Quando brinca é corpo brincadeira, quando come é corpo fome/alimento, quando desenha é corpo desenho, quando dança é corpo depoimento e quando contempla é corpo que gravita entre imagens, sons e espaços. Ser criança é estar em conexão com o espaço corpóreo, com o espaço imaginário e “espaço topos”, é transitar entre o onírico e a realidade.
O que me mobilizou e me moveu a escolher estar, pesquisar e criar para e com crianças, foi justamente seus movimentos, e seus modos de ocupar e inventar espaços no mundo. Acredito que essa escolha foi na verdade um encontro, nós nos escolhemos.
Quando comecei a trabalhar com crianças fiz um juramento que, agora pode parecer um pouco dramático, mas naquela época eu era bem jovem, mas que até hoje se mantém vivo, e aqui conto em qual contexto esse juramento aconteceu.
Eu dava aula em pré-escola e o que eu mais me mobilizava era ficar no recreio observando as múltiplas e simultâneas composições que iam surgindo no espaço. Mesmo parada observando, sentia que meu corpo se transportava para junto das crianças. Percebia as forças motoras e imaginárias criando significados; alternando ritmos, intensidades em fluxos no espaço, e a plasticidade de seus corpos na criação de personagens em seus jogos de invenções. Percebia uma diversidade de composições que surgiam no espaço.
Eu realmente me transportava para dentro daquela paisagem de cinestesias e afetos. Naquela época ainda não havia a noção de *transporte, termo criado por Hubert Godard como um modo de fruição em dança, ou a qualquer evento que aconteça diante de nós que reverbera e altera a percepção e sensação de peso em nossos corpos.
E assim me jurei que jamais iria desprezar a experiência e o saber de uma criança e que sempre manteria o estado de curiosidade e porosidade para estar junto a elas.
Corpo/Relação
Esse Juramento ao longo do tempo foi se transformando em meu princípio ético, ou, como estabeleço minha relação e de como permaneço porosa às informações que recebo delas. E que esse princípio também está presente na elaboração das proposições de minhas aulas.
Dar aula é se relacionar, impossível não sair de uma aula sem estar transformada, emocionada, tocada, provocada, instigada, realizada, angustiada e às vezes frustrada. Acredito que esses sentimentos são as forças propulsoras que nos leva a continuar, ou até mesmo a desistir.
E dar aula é a soma de nossos saberes em dança, em conexão com o corpo/afeto, poroso atento e presente.
Corpo/Estrutura
O corpo possui muitas camadas onde cada uma se entrelaça, e que também mantém sua singularidade. Temos o corpo biológico que envolve toda a estrutura fisiológica e anatômica, e também a subjetividade de nossa corporalidade, território onde transitam as percepções, sentimentos e sensações. Essas camadas tramam o tecido da estrutura corporal como também de nossa estrutura psíquica.
Somos tudo isso e justamente por sermos tudo isso, é que quando estamos com as crianças, toda essa estrutura dinâmica deve estar presente em nossos corpos criadores. Preparar-se para iniciar uma aula é uma forma de ativarmos essa estrutura dinâmica. E quando digo criador é porque acredito que dar aula é também um processo de criação.
Por essa razão, que é preciso ativar, o sentido do corpo/ olhar na ação da observação quando se está dando aula, pois a percepção da experiência do movimento/ envolvimento precisa estar presente, ou como precisamos nos transportar em aula.
É a partir dessa percepção que será possível compreender que tudo é corpo e nada está obscuro, pois o corpo de uma criança (com raras exceções, seja por lesões ou questões patológicas) ainda não tem regiões de surdez como em nós adultos. E por essa razão, quando estamos trabalhando com crianças nossa responsabilidade é imensa, pois são corpos que levarão essas experiências registradas em sua estrutura, sua memória psíquica e corporal.
Corpo/Poéticas
Quando me refiro a ativar o olhar, recorro aos conhecimentos do Método Laban, que recebi através dos estudos e aulas com Maria Duschenes.
Pude entender o quê contem um movimento e aprender a ler as relações dinâmicas dos fatores, tempo, espaço, peso e fluência. Uma alfabetização que me proporcionou, não só ler, como também ter recursos e repertório para criar e pesquisar sobre a infinitude e a poética do movimento.
Quando entrei em contato com os saberes das técnicas de abordagens somáticas, inicialmente pela Eutonia, pude ampliar minhas percepções sobre o corpo a dança e a vida. Um saber que foi se transformando ao longo do tempo em tecnologia.
Por essa razão, quando nomeio meu trabalho de “Dança contemporânea para crianças”, me ancoro nos princípios que fundamentam a poética da dança contemporânea. Um percurso que se organiza através da experiência de um processo de investigação que envolve escolhas fundamentadas em um pensamento sobre a dança, suas identidades culturais e estéticas em fluxo com o imaginário.
O saber e a experiência em dança é uma trama que se constrói a partir de investigações e diálogos transversais. A dança é uma área de conhecimento, ela gera modos de ver e perceber o mundo, e por ser conhecimento, também dialoga com outras áreas. Atualmente sabemos o quanto o conhecimento da biologia da física, seja ela euclidiana como a quântica, as artes visuais, o urbanismo, a tecnologia, literatura e outras áreas de conhecimento, podem ampliar nossas percepções sobre o corpo e estética.
Corpo/Saberes
A dança se faz no corpo, como sujeito e objeto, somos nosso próprio instrumento de investigação que na ação do investigar, vamos compondo uma organização de repertório de movimentos que estão integrados aos saberes, às percepções e ao imaginário, e que em suas infinitas combinações criam significados e se transforma em linguagem. *Patricia Cardona pesquisadora Mexicana, diz que a poética está para a arte como a metodologia está para a ciência. Enfim é a partir do corpo que iniciamos nossos diálogos, investigações e percursos com outras áreas de conhecimento.
Corpo/Aula/Cultura
Há muitos anos inventei o nome “professor espelho” para explicar o que eu não era, no sentido de que meu corpo/ movimento não é um modelo único a ser replicado, mas que meu corpo está presente e reverberando informações e que a criança não deve ser minha projeção.
Retomo aqui a importância do conhecimento anatômico do corpo de uma criança para falarmos agora sobre as praticas de uma aula. Sabemos o quanto o corpo de uma criança se transforma em seu processo de amadurecimento, e que a postura, não é algo imutável, muito pelo contrario ela é mutável tanto no processo de desenvolvimento fisiológico motor e anatômico, como também pelos estados emocionais. O corpo se movimenta intensamente em micros e macros movimentos.
Quando estou dando aula, meu olhar se transporta para o corpo em movimento dos alunos, busco entender aquele modo de estar em movimento no mundo que lhe é único. Meu corpo vibra na atenção, me conecto com suas reações físicas, seus desafios, suas investigações, suas invenções e o prazer quando descobre a chave, que o leva a um novo gesto/movimento para que faça parte da dança que está criando e vivendo em sua integridade.
Durante todos esses anos de trabalho que também se configuram em pesquisa e estudo, pude criar proposições de aquecimento para as varias faixas etárias com as quais trabalhei. Cada momento da vida de uma criança ou adolescente o corpo em sua estrutura anatômica está apto a viver experiências, acessar percursos de investigações e desafios para compor um conhecimento e seguir para mais outros e outros.
Criança gosta de repetir é o seu ritual para conquistar um conhecimento, uma habilidade. Quantas vezes pulamos exaustivamente corda, batemos bola na parede ou ouvimos as mesmas histórias? A partir do momento que ela já tem uma ação/ ritual registrada em seu corpo/memória isso se transforma em um saber fazer, uma tecnologia.
E o saber fazer deve vir da experiência do viver e do investigar um percurso para poder se apropriar e conquistar sua autonomia e aqui podemos dizer se apoderar de seu corpo físico e imaginário.
O aquecimento que é o momento do encontro e da ativação do corpo em sua potencia, também é a conexão do espaço de afeto do tocar e se deixar ser tocado, para que esse encontro seja transformador e não uma obrigação. É a partir do aquecimento que vamos criar as conexões cinéticas e sinestésicas, e o elemento silêncio é muito importante. O silêncio como um fator que ativa a concentração para a escuta do corpo individual e coletivo é uma conquista tanto do professor como das crianças e que não acontece de uma hora para outra, mas sim através da experiência de vivê-los para que crie significado dentro de uma aula de dança. É preciso entender que o tempo de concentração de uma criança e adolescente são muito distintos. E devolver ao grupo o quanto silenciaram em uma ação é também acionar o sentido da escuta. Em uma aula de dança com crianças, muitas danças autorais ou coletivas também podem acontecer no silencio e podemos vê-las com seus corpos envolvidos em suas invenções criando suas danças.
O mesmo podemos falar sobre a música, pois seu lugar na aula é de propor ritmos que dialogam com as variações de tempo peso fluxo e espaço, a partir da escuta sensível podemos trabalhar os ritmos sonoros como um elemento relacional e não como um “pano de fundo” para uma ação/ interpretação.
Transformar as aulas em espaço de investigação e invenções, e não em um espaço onde se deposita um conhecimento, é muito importante, pois trabalhamos com arte e com corpo. Por essa razão, sempre me pergunto o que um grupo tem para me dar e me provocar, pois cada grupo de crianças tem sua cultura seu jeito de estar juntos e nunca um grupo é igual ao outro. E quando digo cultura também me refiro aos vários grupos sociais e culturais que habitam uma cidade. E aqui reafirmo o quanto dar aula também é um processo de pesquisa e criação.
Existem grupos que “pedem” uma experiência mais verticalizada com o fator peso, sentir seu corpo em contato com o chão, os possíveis deslocamentos e variações de seu peso, como organizar a questão da gravidade, o ficar de pé e conquistar o espaço em sua tridimensionalidade. Como também existem grupos que pedem o fator tempo, seus ritmos pausas/ silêncios e variações, que por sinal esse fator está muito ligado a simultaneidade de fatos que tem sido uma realidade entre as crianças.
A partir dessas perguntas ou provocações, vou organizando a dinâmica do aquecimento que já tem uma estrutura organizada de movimentos, mas que podem ter dilatações, como por ex: ficar mais tempo no chão sentindo o peso do corpo, ou alternar por mais tempo os ritmos. Da mesma forma crio as escolhas das proposições de temas de movimento, para que elas investiguem e criem suas danças autorais e coletivas com novas percepções de seus corpos.
Chegamos aqui no “para e com crianças” criar uma composição com um grupo significa criar um percurso, um processo que está conectado com a cultura do grupo, com tudo que compõe sua identidade seus interesses e desafios que também são nossos.
Existem varias possibilidades para se chegar á uma composição, que com certeza está articulada as escolhas técnicas de cada um. Mas o que vejo como mais importante dentro dessas escolhas é a participação das crianças como criadoras e não como replicadoras de movimento, que elas entendam o caminho que se percorre com o corpo não só em sua atuação individual, mas como integrante de um corpo coletivo que dança junto que se relaciona e se desloca no espaço, pulsando ritmos e reverberando movimento. Este é o significado de “para e com” o professor com seus saberes sustentar uma proposição de criação junto com as crianças, em um movimento de dar e receber, um fluxo onde o prazer em criar precisa estar presente.
Na minha pesquisa as “Historias de movimento”, são composições que fui criando junto com as crianças ao longo do tempo e que agora se transformaram em repertório, elas estão sempre sendo atualizadas pelos grupos de crianças. Como também trabalho essas matrizes em cursos com artistas e educadores de dança.
Vejo a composição como o resultado de um processo, que as crianças vão construindo através de sua experiência individual e coletiva. Como seus corpos vão se apropriando de saberes cinéticos e estéticos que fundam a linguagem da dança. As crianças registram com desenhos os processos que viveram no final de toda aula. Esse é um modo de desdobrar a experiência do corpo e também uma forma de compartilhar com o grupo, são seus diários de bordo.
Quando proponho que elas façam uma dessas “Histórias” e percebo que elas se conectam, inicio um trabalho onde do aquecimento até as proposições de improviso estão articuladas com os elementos de movimento da história, e assim vamos pesquisando criando e até re inventando a historia original. Como também podemos investigar e criar uma história de movimento a partir de um livro ou uma obra de dança. O processo de investigar, estudar uma obra é muito interessante com adolescentes, pois tanto é possível interpretar, atualizando-a como também fazer uma releitura. Assim é possível percorrer o caminho e fazer um estudo da historia da dança, na perspectiva de entender a época e o contexto que essa obra foi criada e como ela pode criar sentidos e significados para o grupo na atualidade.
Ao final de um ano as composições são compartilhadas com as famílias, comunidade e para outras crianças como uma obra coletiva. A criação de uma dança com crianças também é um processo de investigação, de escolhas de duvidas e descobertas. Criar para e com crianças é também atuar na raiz da formação de platéia, é preciso conquistar territórios para que a dança em suas diversas manifestações estéticas possa estar presente em nossa sociedade.
Penso que o mais importante sobre tudo o que falei nesse texto é aprendermos a nos curvar diante da grandiosidade da infância e ver as crianças como criadoras e que independente do caminho que elas seguirão em suas vidas a dança estará com elas.
Referências Bibliográficas
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