Bem ali, onde o encontro acontece
por Andrea Elias
Andrea Elias
Diretora, coreógrafa, dançarina, atriz e produtora cultural. Doutora em Artes Cênicas, Mestre em Teatro, Especialista em Educação Estética e licenciada em Artes Cênicas pela Unirio. Desde 2003 dirige a Cia de Dança Teatro Xirê. Em 2009, funda com Norberto Presta, a Trânsito Produções Culturais e desde então gerencia as ações da empresa, além de atuar à frente da Cia de Dança Teatro Xirê.
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Bem ali, onde o encontro acontece[1].
Abro esta conversa pedindo licença pra entrar em território onde sou convidada e me sinto em casa pra falar de coisas de danças aprendidas com crianças. Sou Andrea Elias, criei e dirijo a Cia Xirê há mais de 20 anos. Neste percurso, me perdi muitas vezes, mesmo sendo o perder-se parte da dança, e procurei guias. Na busca, alguns encontros me presentearam a feliz surpresa de não estar só, embora tantas vezes neste percurso de 20 anos dançando para e com crianças tivesse parecido ser assim.
De encontro afirmo ser feita a poética da Cia Xirê. Encontrei Uxa Xavier pela primeira em uma daquelas buscas que me surpreenderiam fazendo-me sentir acompanhada. E é sobre as artimanhas desse encontro (dessa dança?) que traçarei as próximas linhas. Mesmo tendo visto presencialmente uma única performance do Lagartixa na Janela, uma deriva (como assim chamavam), atrevo-me a apontar neste texto alguns pontos onde nossos projetos, o da Xirê e o do Lagartixa, se tocam, se encontram, dialogam entre si mesmo à distância. Sim, nossos projetos, embora envolvam as infâncias, são esteticamente muito distintos, mas se dirigem às crianças com uma escuta curiosa, que convida aos que dele se investem a um “não saber” nada ingênuo.
“Não saber” diante de crianças requer maestria de intenção e permite a elas que elas, as crianças, sim, saibam, e partilhem o que sabem, colocando no mundo sua parte. E este “não saber” vem assim entre aspas, porque ele não é uma ignorância, assim, por natureza, mas um saber ignorado que possibilita estar diante da maestria dos que, dentro do senso comum, “não sabem”. “Não sabem” talvez aquilo que julgamos que sabemos. Mas, o que sabem as crianças às quais tantas vezes julgamos “não saber”? Que saberes desperta o corpo que dança para e com crianças, em nós e nelas?
Meu primeiro encontro com Uxa e o trabalho do Lagartixa foi por meio de um artigo publicado no Portal MUD[2], começou aí nossa dança. Depois, nos encontramos novamente no Seminário do Festival de Dança de Joinville[3] que tinha como tema a dança para e com crianças, o ano era 2017. Ali, nossas ideias dançaram juntas, não é sempre que nos juntamos com pessoas que olham para o mundo com uma lente parecida com a nossa. E aquele Seminário em Joinville, no qual participamos juntas, nos favorecia esta epifania. E, sinto que a partir daí, começamos a dançar mais perto, apesar da distância. Um ano depois, generosamente, Uxa me concedeu uma entrevista para a pesquisa de meu Doutorado, na qual eu investigava as questões formativas nessa aventura de dançar com crianças e para elas. Com a entrevista, que também me foi generosamente concedida por outros artistas que dançam neste envolvimento com crianças, queria averiguar se havia questões comuns que nos atravessavam e guiavam nosso fazer. E, sim, elas existem, ainda que cada um de nós que atuamos em dança com crianças dê a elas suas respostas criativas singulares. Foi nesta entrevista, então, que, para mim, se evidenciaram os passos dessa dança feita do encontro à distância de nossos projetos.
[1] Este texto é fertilizado pelos pensadores franceses Jacques Rancière, Gilles Deleuze e Marie Bardet.
[3] XI Seminário de Dança “1,2,3 e já! A criança pinta, borda e dança”, com coordenação de Jussara Xavier.
Quando digo que a poética da Cia Xirê se faz de encontro, refiro-me ao fato de que, mesmo tendo nossas obras meticulosamente criadas e ensaiadas, elas só se fazem mesmo é ali, onde o encontro com o público acontece. Mas, para que esta poética seja possível é necessário criar condições para que o encontro com o público se dê. Não, não me refiro, exclusivamente, ao fato de dar a obra a ser vista, de realizar um espetáculo diante de alguém, de marcar uma hora e local para que o público nos venha visitar. Falo de encontro, de um espaço onde comungamos, onde cada participante põe um bocado, onde nos confundimos sem nos perder ou até nos perdendo por momentos. Falo de instantes que não se repetem, mesmo com muito ensaio, ou que ensaiamos para poder não repetir porque nos deixamos derivar com o que acontece. Neste aspecto, entendo que as obras da Xirê se encontram com as do Lagartixa, ainda que sejam esteticamente propostas tão distintas. Os acontecimentos em dança do Lagartixa falam de encontros (mesmo que evidenciando os desencontros): com a cidade, com os seres que nela circulam, com as memórias ativadas, com os elementos cênicos, com os jogos corporais quase cotidianos, com e com e com... Assim entendido, fica até difícil seguir chamando de espetáculo ao que fazemos, porque mesmo quando visto a partir do escurinho da poltrona do teatro, há ali o desejo de criar este território do qual algo emerja entre os presentes, seja na sala de espetáculo ou no espaço urbano. Algo que não foi ensaiado por nós, mas provocado pelo que ensaiamos e que, muitas vezes, até acabamos por chamar espetáculo.
Há também aquela já mencionada intenção de “não saber”. Quando “não sabemos” permitimos que coisas aconteçam, inclusive aquelas que nem sabíamos que podiam acontecer. E quando digo que é intencional o “não saber” é porque para dar-se a ele, o “não saber”, é preciso também saber. Para estar diante de crianças é importante saber “não saber”. Não é sobre escolher o que “não sei”, ou fingir “não saber”, mas sobre permitir-me não ter resposta e colocar-me diante do outro com uma indagação curiosa, permitindo ao outro dar-me as respostas mais inesperadas. E ir com. E dançar junto.
Esta atitude exige uma qualidade tônica da musculatura de quem dança que requer trabalho por parte daqueles que se lançam no ofício. Estar pronto para encontrar é o treinamento que se propõe. Ainda que nossa dança seja feita de encontros que não se dão, exclusivamente, de modo objetivo, ou seja, fisicamente, é preciso preparar a musculatura do corpo para ela. E, claro, sabemos que a musculatura esquelética tem muitas camadas, que, nesta complexa rede de interações que é o ser humano, fala de todo o ser. Dançar para e com crianças se converte, então, numa aventura ética, em uma tarefa de preparar a musculatura para encontrar, para estar pronta a “não saber”, para deixar espaços onde o outro/a outra possa colocar seu pé e dizer comigo. Ou dizer coisa alguma, apenas estar junto. Um estar junto que transforma também os que estão ali, se encontrando, porque já não são mais a mesma coisa de antes do encontro.
Encontrar também é isso: (trans)formar. Percebo que para ambos os projetos, o do Xirê e o do Lagartixa, encontros (trans)formam. Faço uso da grafia que imprimi em meu trabalho de tese, assim, com o prefixo “trans” entre parênteses, porque esses encontros de dança com crianças formam aqueles que se encontram atravessando-os e lançando flechas para além: dos saberes, dos tempos, das memórias, dos territórios que os habitam. Nosso fazer é estético e aí habita a pedagogia, na ética de um saber sensível onde perceber, imaginar, criar, são relações dinâmicas, em movimento de jogo, de brincadeira. (Trans)formar é, então, uma dinâmica trans. Pedagogia e performance se atravessam, ocupam uma só e múltipla ação, ali onde o dançar não se impõe, não se ensina, não se aprende, mas emerge do e no encontro entre aqueles que se disponibilizam a encontrar.
E, nesta dinâmica, até o entendimento do tempo habitado pelo o que entendemos criança se embaralha, pois que, muitas vezes, a criança surge ali, na memória daquele já não tão criança que vivencia a performance. Assim, dançar para, com e entre crianças não se reduz à relação com uma faixa etária, mas é sempre relação dinâmica na alteridade com aqueles que encontramos em dança.
Toda vez que um corpo dança diante de um olhar que o encontra, com o olhar que acompanha o corpo se move uma inteira estrutura de pensamento. Para onde se move não podemos saber, mas se o olhar está ali, grudado, encontrado com o corpo que dança, se move também o pensamento, de quem olha sim, mas sempre também de quem dança. Nesta movência de pensamento onde o percebido pelo corpo, de quem dança e de quem “hipoteticamente” vê a dança, imagina e cria mundos, produz-se conhecimento. Fruição e formação já não são mais ações distinguíveis. E já não há sentido algum justificar pedagogicamente nossos trabalhos feitos de “não saberes” para, com, entre crianças. Nesta dança de encontrar o projeto do Lagartixa com o da Xirê, percebo também este ponto de contato, nesta postura ético-estético-política que compreende que criação e fruição são produção de conhecimento, onde a Dança para e com crianças não precisa ser justificada pelas pontes de saber que ela faz com tantos infinitos campos de conhecimento, mas porque ela é, “simplesmente”, dança para, com, entre crianças. E isto é tudo o que a dança precisa ser para constituir conhecimento.
Neste entendimento ético-estético-político, nossos projetos, que se criam por caminhos tão distintos, se encontram mais uma vez quando a intimidade da sala numa performance proposta para cinquenta participantes e dançarinos que se movem em meio a eles (como nos trabalhos “Entrelace” e “Dingling” da Cia Xirê), toca a intimidade da relação entre uma dançarina com um pedaço de giz colorido na mão no expandido espaço de uma praça pública da cidade de São Paulo (como naquela única vivência com o Lagartixa na Janela que vivenciei).
Quando digo que nossos projetos dançam juntos à distância, é também um modo de referir-me a uma relação com o espaço, porque sinto a proximidade e isto me fortalece e me enraíza em meu próprio projeto onde quer que ele esteja sendo desenvolvido. E isto também é um bonito da dança, o criar raiz para mover. Dançar junto, configura-se atravessamentos dinâmicos que formam, encontros que acontecem em nós e nos imprimem sua potência. Sim, estamos juntas e nossos passos não se confundem, tampouco se excluem, mas se fortalecem em suas singularidades sempre que se encontram, sempre que são Dança. Sabemos da força política desta sutiliza que é dançar no meio de crianças e aí também nos encontramos.