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A dança e os guardiões do vazio

Renata Fernandes

“o que levou a dança a se colocar em risco (...) para então se expor à causalidade, ao desconforto, ao desinteresse difuso da vida das ruas?”

(ROPA, 2012, p.113)

Uma recente experiência me marcou e acendeu novamente uma reflexão sobre os espaços dedicados à dança. Esta reflexão nasceu especialmente no âmbito da dança-educação e a experiência ocorreu em uma escola especialíssima que ouve às necessidades dos professores e das crianças que acolhe, todas entre 4 e 5anos. Nesta escola tive durante algum tempo diversos espaços à disposição. Nenhum deles era uma sala de dança.

E sim, isso é um luxo!

Em nossos encontros os saberes da dança e das artes do movimento, bem como de práticas contemplativas, estavam ao nosso serviço. Para dias em que as crianças estavam com muita energia e dispersão, o movimento poderia nos ensinar a aquietar e concentrar; em dias de chuva, nosso corpo-brinquedo ajudaria a colorir o estado gris dentro da sala dançando com o som da chuva e aprendendo o que ela nos ensina sobre gravidade, sobre transição, sobre transformação. Houve dias de explorar a composição em grupos, houve dias de explorar o que podemos dançar sozinhos. Dias em que era importante prestar atenção na pele, em como ela permitia nossa dança; dias em que o pé era nosso grande condutor. Dias em que os nossos ossos reluziam flutuando pelo ar criando uma dança iluminada. Dias em que a brincadeira incluía a todos e todos estavam dentro do acontecimento da dança; houve dias em que criavam para serem assistidos pelo outro.

Para que estas experiências ocorressem sempre houve algo fundamental:

um espaço para existir a dança

um espaço para acolher a dança

um espaço para fertilizar a dança.

Um pedaço de chão.

Uma base sobre a qual viver nossa condição gravitacional e desafiá-la poeticamente em danças, nossa condição humana. Não tínhamos uma sala de dança, mas tínhamos à disposição nesta escola pública muito mais do que muitos professores e turmas possuem em suas escolas: uma sala de aula cheia de móveis com pouca maleabilidade, uma sala multiuso que batizamos de ateliê, pois um de seus fins era ser o lugar que acolhe produção de arte. Como eu era a professora de arte, tratei de fazer desta sala algo bem móvel – os móveis eram realmente aquilo que os definem: móveis. Quando precisávamos, eu dispunha mesas e cadeiras. Quando não, esta sala ficava totalmente vazia. Também tínhamos à disposição uma quadra de esportes, arquitetonicamente como um pátio, para onde davam as portas de algumas salas de aula. A quadra era pequena, com bom pavimento e sem buracos. Por fim, tínhamos uma querida praça em frente à escola, lugar que podíamos ocupar sempre que desejado, autorizados por responsáveis e gestão escolar. Até então usava com liberdade e intencionalidade cada um destes espaços, adequando-os à proposta do dia e ao estado dos grupos que atendia. Cada espaço nos ensinava sobre o que significa estar em movimento (ou em pausa) neste mundo. O chão lisinho e frio da sala-ateliê permitia deslizar de meias ou até mesmo descalço e proporcionava giros com velocidade que pediam aprender a controlá-la, bem como reconhecer o eixo que nos sustenta nestas situações.

Já o chão da praça, áspero e por vezes quente do sol,

nos ensinava que o deslizar é salto e sobrevoo,

deslocamento é soltar do chão.

A sala de aula cheia de móveis nos permitia criar incríveis caminhos tridimensionais ao realocar todos eles de forma inusitada, dando vida ao que parecia estagnado e fixo. Testemunhar a transformação da sala e ainda poder dançar a nova configuração banhava de alegria e surpresa a experiência de reconhecer a potência do espaço para a dança, para a arte e para nossa força de carregar móveis, de alterar a matéria. Somos fortes! A quadra de esportes era também reconfigurada e nos ajudava a caminhar em linhas retas e curvas pré-determinadas, ajudava-nos a preencher o dentro e o fora das formas delimitadas, ajudava-nos a ocupar em grupo um espaço maior que a sala e menor que a praça. Com um teto bem mais alto que a sala e bem mais baixo que o céu da praça. Era menos intimista que a sala, onde não entrava ninguém durante a aula; às vezes passavam grupos ou crianças ou adultos para ir de um lugar ao outro... mas isso era pouco para nos perturbar a atividade. Já na praça estávamos bem abertos: éramos assistidos por passarinhos, gatinhos, cachorros e borboletas. Até mesmo mamães com seus bebês nos carrinhos, velhinhos em caminhadas ou adolescentes com seus skates. Isso nos lembrava que estávamos “lá fora”, onde tudo pode acontecer sem previsão, mas também onde às vezes conseguíamos ficar cada um dentro de si e juntos com o grupo sem deixar as visitas interromperem nossos estudos da praça. Às vezes eles podem ser convidados a participar! 

A praça também nos ensinava sobre alturas. 

Tem um palco, numa parte mais elevada, tem bancos, tem rampas, tem grandes corredores. Tem grama, tem buraco, tem árvores bem, bem altas! Tem folhas caídas de todas as cores, tem flores e tem formigueiro. Não pode sentar em qualquer lugar. Tem parte mais limpa, tem parte mais suja. Tem parte com sol, tem parte com sombra. Tem parte que é melhor para correr, tem parte que é melhor para se equilibrar, tem parte que é melhor pra fazer roda, tem parte que é melhor pra girar. Tem parte que é melhor para olhar bem longe... e porque tem toda esta grandeza, esta liberdade, e tem também a rua em volta dela, é lugar de ficarmos bem atentos: estar juntos e olhando-nos nos olhos, de ouvidos bem abertos, é importante para não nos machucar! Dar as mãos pode ser um ótimo dispositivo para atravessar a rua, para andar pela praça e para dançar! Sentir o vento e também os dias mais quentes, dias mais frios, dias mais quietos, dias mais velozes nos educava a pele e o corpo inteiro para os fluxos e o preenchimento do espaço. Dá para ver o céu e ele é alto, dá pra ver um rio e ele é fundo. Dá para ver a linha do horizonte e ela é longe. Dá para dançar e contemplar. Dá para fechar os olhos, deitar no chão e guardar as profundidades do fora bem dentro da gente.

Tudo isso nos ensina a dançar.

No meio do ano, após um semestre bastante intenso de ações artísticas, recebemos a notícia de que acabávamos de perder a sala do ateliê. Ela seria ocupada imediatamente por uma turma de cerca de 30 crianças de 3 anos realocadas devido ao fechamento emergencial de uma creche da vizinhança. Com isto perdíamos na prática dois espaços: o ateliê e a quadra, pois o ateliê seria uma terceira sala cheia de crianças voltada para a quadra, dificultando o uso desta devido ao barulho que vazaria de mais uma sala e ao maior fluxo de pessoas nela, o que fatalmente seria demais para os que estivessem em atividade. Agora tínhamos a sala de aula e a praça. Ah que bom, eu poderia exclamar! Ainda temos isto! Ao menos isto! Mas não. Eu não poderia concordar com a ideia por trás da escolha de nosso ateliê para acolher a nova turma de 30 crianças: espaço vazio tem de ser ocupado. Sabemos todos os professores de escolas públicas e muitas privadas que espaço vale ouro e que o professor deve ser o guardião de seus espaços, caso contrário ele pode sim ser tomado por qualquer ação comprovadamente pedagógica. No caso da arte isso é reforçado.

A arte evidencia que ela precisa de espaço.

Abrir espaço.

Cultivar vazios.

A dança, mais do que todas as outras artes, existe a partir do espaço vazio. O ataque que sofremos de colegas, gestores e governos que não podem compreender a importância do espaço vazio na educação de uma pessoa é algo que precisamos partilhar. Partilhar para nos reconhecer. Reconhecer para nos fortalecer. Somos e continuaremos sendo os guardiões dos espaços vazios. Cheios de nada e prontos a virar tudo o que a poesia nos permitir. Eu não cheguei na especificidade do espaço vazio para a dança, eu estava disponível a viver o que os variados espaços nos possibilitavam. Mas ao perder o ateliê, nosso espaço conquistado e mantido com dificuldade, para um comunicado geral, imperativo ao qual resistimos sem vencer, comecei a questionar que a beleza da ocupação de nossa praça com as aulas de dança perdiam o brilho. Não se tratava mais de uma escolha, não se tratava de uma possibilidade: se eu quisesse continuar dançando com as crianças, o único local para as aulas seria agora a praça.

O que mudou?

Não estava mais exercendo a escolha de estar lá. 

Eu, as crianças e nossa dança fomos literalmente postas para fora da escola.

Se quiser dançar, vá fazer lá fora.

Minhas aulas continuariam acontecendo. Como sempre continuaríamos, como vaga-lumes a existir. Com forte vocação para ervas que brotam no cimento. Mas esta força de resistência assumia agora um tom de perda. Eu estava até então garantindo um espaço de dentro e fora para as crianças em experiência de dança. De intimidade e expansão. De contato consigo e com o mundo. De consciência de si e de estar com o mundo. Não é possível com crianças pequenas e com a dança estar só no fora, só na expansão, só no mundo. É no dentro da intimidade que fortalecemos as qualidades de movimento que nos ajudam a viver o fora da praça. Da vida.

Poderíamos ter perdido a praça e teria sido triste.

Muitas crianças não têm a praça como possibilidade.

Ter a praça como possibilidade é viver uma pedagogia da dança urbana.

Isso é de fato potente, bonito e necessário hoje. Mas dentro deste percurso existe a dança que precisa ser cuidada de dentro para fora. Existe o vazio dentro de nós que precisa ser cultivado para danças mais delicadas. Milhares de professores de arte neste território dão conta de continuar suas ações artísticas com as crianças.

Continuam dando o nome de arte.

Mas me pergunto: Como dar conta de ensinar dança mantendo este nome “curricular” sem condição alguma, como ocorre com muitos professores que continuam subsistindo? Certamente estamos criando experiências muito interessantes, mas a ausência total de espaço dedicado intencionalmente a esta atividade tem limite. Professores de ciências lutam por seus laboratórios. Professores de educação física lutam por suas quadras e materiais de aula. Professores de artes idem. E quem quer fazer dança terá a luta de buscar peculiaridades dentro desta busca.

Nós adultos, educadores e artistas somos convocados a guardar estes espaços.

Da arte.

Da criação.

Do nada que tudo isso representa para a sociedade hoje.

Eu desejo a todos estes que consigam cultivar os espaços vazios no interior das escolas, reconhecer a potência destes de dentro para fora, para que tenhamos todos o propósito de defendê-los de fora para dentro.

Vivemos tempos difíceis, escuros e preenchidos de coisas que nos atrapalham o movimento, o nosso trilhar, o nosso dançar. No entanto, sabemos que existem alguns humanos como vaga-lumes, já nos lembrou Didi-Huberman ao ler Pasolini, que seguirão na potência de sua pequena chama como guardiões dos espaços vazios para que tudo o que tem que ocorrer, desenrolar, deslizar, saltar e se transformar continue em desenvolvimento. Juntos e espalhados nessa imensidão, quase invisíveis, eles sabem dançar o dentro e o fora que nos faz humanos. Eles seguirão trabalhando para que estejamos cada vez mais prontos a receber o estrondo de uma dança que atravessa o espaço vazio e em silêncio, movendo todas as moléculas ali presentes, nos dizendo tanto sem palavra alguma, operando a magia de dar forma e sentido ao vazio que tanto negamos.

Mas ainda ecoa inquieta a pergunta, provocada por CasiniRopa, mas agora voltada especialmente aos educadores: Educadores artistas da dança têm ocupado espaços urbanos e alternativos por escolha estética ou por sobrevivência?

Referência Bibliográfica


DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Vera Casa. Nova, Márcia Arbex, tradução: Consuelo Salomé, revisão. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2011. ROPA, Casini Eugenia. A dança urbana ou sobre a resiliência do espírito da dança. Trad. Milton de Andrade. Revista Urdimento, No. 19. 2012.

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