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Narrativas pandêmicas: modos de produção da dança contemporânea na dança paulistana 

por Flávia Brassarola Borsani Marques

Transcrição da entrevista com Uxa Xavier, diretora da Lagartixa na Janela

 

Data da entrevista: 28 de outubro de 2021

 

Flávia Brassarola Borsani Marques: Podemos começar!

Uxa Xavier: Isso, perfeito!

FB: Uxa, como eu te expliquei, eu estou usando uma metodologia que é a da entrevista narrativa, em que eu entro mais como ouvinte. A partir de todas as entrevistas é que vão surgir algumas categorias e, se precisar, retorno com alguma pergunta mais específica para você. O método é deixar a memória vir, as sensações, as falas, trazer o próprio corpo para isso.

UX: Exatamente! E eu achei super interessante quando li a pergunta, porque isso ainda está muito recente nessa memória, nessa corporalidade.  Essa questão de reinventar, eu não uso mais, pois não sei se foi uma reinvenção, penso que foi uma invenção mesmo.

Acho que está mais no lugar da invenção do que propriamente da reinvenção, porque era uma coisa que não existia, então tivemos que realmente inventar. E pensando no seu disparador, na sua pergunta, que achei bem legal, me organizei um pouco para ir pela minha narrativa porque se a Flávia não me mandar um roteiro irei viajar em milhões de assuntos, mas quando vi que era um recorte tão concreto fica mais fácil para me organizar. Eu pensei em trazer esse lugar de memória primeiro como uma percepção individual como artista, e na sequência, como que o Lagartixa viveu, intensamente, esse processo, porque ganhamos um Edital de Fomento a Dança, e a escrita desse projeto foi pré pandemia, e o resultado que havíamos ganhado veio quinze dias antes, uma semana antes da pandemia, então vivemos um trânsito um impacto.

 Como artista, quando tudo se oficializou, nessa grande crise mundial sanitária na qual estávamos cerceados, trancados em casa, a primeira sensação que tive foi a que eu iria deixar de existir. Eu ficava pensando: “Como vou existir agora? Como vou trabalhar, criar, me relacionar?”, ainda mais pensando nesse lugar em que o Lagartixa é, que é um trabalho em espaço público. Então me veio aquele susto e o impacto de “meu Deus, vou deixar de existir”. Eu sou meio dramática, mas a sensação era essa, que eu havia deixado de existir e agora o que eu iria fazer?. É claro que, passada uma semana, tudo se acalmou, vi que continuava existindo e estamos todos aí. E nesse momento, justamente, que foi essa intensidade de estar recluso, comecei a observar que começaram a chover propostas para crianças fazerem coisas em casa. E eu ficava pensando: as crianças quase nunca ficam em suas casas, quem sabe pode ser até um estado de repouso, porque ainda não sabíamos o grau da situação que iríamos realmente viver.

Então foi aí que criei a proposta do “Casa Mundo”, que era justamente perguntar para as crianças o que elas estavam fazendo em suas casas e trazer esse jogo, essa brincadeira, para artistas da dança que não necessariamente trabalham com a infância, mas como aquela gestualidade e aquele jogo  das crianças remetiam à infância de cada artista.

E foi uma coisa muito legal porque, como era o momento que todos estavam sob o impacto, foi um respiro geral para todos e, para todos os artistas convidados, foi uma alegria fazer e se conectar com as crianças também. O “Casa Mundo” foi um primeiro momento para eu começar a entender que era possível criar e que a nossa potência é maior do que podemos imaginar, e essa capacidade de inventar tem muito a ver com a própria presença da infância, o que a infância inventa, o que você inventa na sua infância quando não pode ir para outro lugar.

E foi nessa linha do tempo  que ganhamos O Edital de Fomento a Dança, e a proposta para a criação do projeto , era  completamente diferente. era um comemorar os dez anos da, do grupo, e criarmos perguntas para aqueles objetos relacionais com os quais trabalhamos durante tantos anos e para onde eles nos levariam para essa nova investigação, criar uma nova obra a partir de elementos que fazem parte do nosso repertório.

O projeto se chamava “As Dobras de uma Obra”, com várias ações, como fazer uma residência com artistas da dança e educadores, oficinas para crianças, e encontros com artistas e arquitetas.

 Fizemos um encontro com as arquitetas do coletivo CO Criança que reformaram uma praça com as crianças da Vila Brasilândia, e a ideia dessa ação era nos deslocarmos até a Vila Brasilandia para encontrarmos outros lugares possíveis na cidade de São Paulo. Essa ação se chamava “Encontros e Deslocamentos”.

Houve um momento também com a Marina Marcondes Machado professora da UFMG e parceira do Lagartixa desde seu inicio  e  o Poeta e educador André Gravatá (?) que imaginávamos criar uma mesa itinerante  que seria uma deriva pela cidade conduzida pelos dois , mas a Marina  ficou isolada  em Belo Horizonte e André não podendo sair de Embu das Artes.

Enfim estávamos realmente isolados e em quarentena., primeiro ficamos no ar, nos perguntando: o que iríamos fazer?

Então começamos a fazer os encontros por Zoom como uma forma de entender o que poderia acontecer, e também porque tínhamos um cronograma a cumprir, que são essas partituras duras com as quais temos que lidar, mas que acho que são boas, porque definem uma temporalidade.

Então começamos pelo Zoom, depois nos arriscávamos a nos encontrar em uma praça na qual já trabalhávamos, e a situação ainda estava uma incógnita para todos nós. Mas chegou um determinado momento em que eu disse ao grupo que precisávamos para de sofrer, porque estava virando um sofrimento, as pessoas ficavam em dúvida sobre ir ou não ir, e ao chegar à praça todos distanciados e com medo. Que corpo é esse que está com uma inscrição nova de cuidado, de medo, de uma incógnita? Porque todos sabíamos muito pouco sobre o Corona Virus, e estava se cogitando, a proposta de uma vacina, mas ainda era somente uma possibilidade, ainda nem estava no caminho de uma realidade.

E foi muito interessante porque eu disse para paramos de sofrer e aceitarmos trabalhar pelo Zoom porque, querendo ou não, era o único lugar no qual teríamos segurança e vermos no que daria tudo aquilo.

Não poderíamos dizer que não iríamos mais fazer projeto, e não éramos os únicos, eram muitos os que estavam nesse lugar, de se readequar, e aí veio a palavra reinvenção, mas eu continuo assumindo a palavra invenção. E foi muito interessante porque como eu já tinha vivido a história do “Casa Mundo”, comecei a propor para o grupo que já que estávamos de castigo, trancados em casa, essa pergunta começou a se desdobrar nesse lugar, do devir, das memórias, porque trabalhamos muito nesse lugar na memória e da infância, de como ativamos a nossa própria percepção de memória para dialogar com a criança e não no lugar adulto centrado. Uma prática de pesquisa de como acessar essas camadas de memória.

Então começou com essa questão do “castigo”, mas depois começamos a ver que a palavra castigo faz parte de um lugar que já não é mais uma palavra boa, pois remete a sofrimento e como poderíamos transformar isso? Assim chegamos a esse lugar da espera, que é o que você faz quando tem que esperar?

E foi essa a pergunta que moveu toda a pesquisa. Então fomos para dentro de casa e começamos a trazer a nossa praça para a nossa casa, era a brincadeira, e o que poderíamos buscar nessa casa a partir dessa pergunta, dessa nossa história, e acho que isso criou um novo enunciado, conectado com uma espacialidade muito clara, que era casa e tudo o que tinha em dentro e em volta dela. Esse lugar foi um lugar muito interessante nesse momento de pesquisa, que é aceitar o que está acontecendo e entender o que podemos abrir de brechas e criar anti estruturas a partir disso.

Com isso, o grau de sofrimento diminuiu bastante, porque a partir disso tínhamos muitos recursos a investigar e, por trabalharmos já há dez anos juntos, tínhamos uma conexão de afeto que nos sustentou muito bem. Foi um lugar muito novo em que eu ia, e não só eu, isso é um consenso, conversávamos muito sobre todo o começo do trabalho, sobre o que estava acontecendo, pessoas que estavam indo embora, pais de amigos que se foram, situações difíceis, então sempre esses dados de realidade estava ali costurados, no que estávamos vivendo. Não criamos um mundo à parte, nós trazíamos esses sentimentos tão pontuais e reais, porque era um lugar que tínhamos para nos acolher, para podermos respirar, criar, e não como um lugar só de produção. Nós tínhamos toda essa rede de afeto que foi muito bem cuidada para darmos conta do que estava acontecendo.

Por estarmos juntxs a tantos anos conseguíamos nos conectar pela tela sabíamos onde estava a densidade do corpo do outro, apesar de ser uma outra materialidade, pois a tela nos remete ao aéreo. Tanto que eu ficava brincando que estávamos  no estado Devir/tual .era uma relação de  encontro e criação virtual que estávamos vivendo.

E foi muito interessante porque, nesse processo, tinha chamado a Sheila Arêas,para a preparação corporal  ela é  uma artista da dança, que tem uma pesquisa muito linda a partir da pratica somática de Rolffing. Fizemos todo o trabalho de preparação corporal com ela via Zoom.

Essa questão da Sheila foi uma coisa incrível porque ela é uma pessoa maravilhosa, fez todo o trabalho com a abordagem somática conosco via Zoom, e foi muito bom, até porque estávamos precisando ativar outras percepções, tudo estava muito bidimensional. Foi um trabalho muito interessante, que durou três meses, e a forma como ela foi conduzindo e conectando com a própria construção dramatúrgica da coreografia foi uma coisa muito positiva e potente para nós. Então mesmo diante daquela situação de enclausuramento e isolamento na qual estávamos vivendo, conseguimos construir redes que fortaleceram essas redes de sustentação de grupo de um trabalho que já existe há dez anos. Eu não sei como seria esse contexto, por exemplo, com um grupo de pessoas que nunca trabalharam juntas. Não consigo imaginar, e acho que algumas pessoas conseguiram, mas eu não sei qual a energia que teve que ser investida para poder chegar a um corpo coletivo, vamos dizer assim. Eu acompanhei o trabalho de vários amigos, mas que também os performes e os intérpretes já haviam trabalhado juntos. Então é muito interessante ver como a memória do nosso corpo nos salva nessa hora. Ela é real, não é uma  simulaçao, estava ali. E o quanto, dentro da dinâmica das práticas  do Lagartixa,  trabalhamos muito com os  pensamentos, articulados  com os procedimentos .

Trabalhamos com a Fernanda Eugênio- AND LAB-, em um projeto anterior e incorporamos a pratica de criar o tabuleiro, como um espaço de jogo, que ativa um estado de relação e não como um estado de associação de ideias.  A pergunta é: Como você se move nesse grande tabuleiro? Saber parar, observar, entender tudo o que se relaciona e estar em relação ao mesmo tempo, então essa pratica nos ancorou e foi muito forte para nós, pois já tínhamos todos esses materiais, para fazer essa leitura enfim as telas se transformaram em um grande tabuleiro e essa criação  coreografica nesse espaço virtual, foi muito interessante, uma nova invenção.

E eu, como diretora, tive que me desdobrar, porque são cinco telas acontecendo ao mesmo tempo, e às vezes eram duas, às vezes eram três, e eu fui criando fisicamente, uma coisa bem corpo, uma relação de filtro para estar com cada um, na minha leitura pela tela. Mas claro que isso só foi possível, isso dentro do meu depoimento, porque eu já tinha um arquivo muito grande de todos, então esse arquivo foi completamente reconfigurado como leitura do outro, a percepção de como entender como cada um aciona, quais são as dinâmicas mais relevantes, que o precisa ser trabalhado. Não foi fácil Flávia, mas acho que criamos um trabalho muito bonito, porque eu o percebo como um depoimento de um momento, muito intenso e determinante para a história do mundo e isso ficou claro. Não sei se você conseguiu ver o trabalho que inclusive está no YouTube, mas nós não cancelamos o corpo Zoom, nós trabalhamos com as imagens do Zomm, e fui com o Marcelo Villas Boas , que fez a direção de vídeo, na casa de cada performer para podermos gravar todas as partituras individuais, para depois fazermos as escolhas em relação ao que foi criado pela tela do Zoom, porque comecei a ficar preocupada com a edição do vídeo, teríamos que assumir o Zoom porque é o depoimento de um momento muito forte, que não é uma coisa particular, mas da humanidade. Então a tela Zoom tem que ser assumida dentro dessa construção dramatúrgica, dentro dessa narrativa, e ficou muito legal.

 Claro que  tinha o sofrimento do não encontro com as crianças, isso dói, e também  por que faz parte de nossas praticas na criação encontrar e dialogar com as crianças,  mas aí eu pensei no  recurso do áudio, então fomos mandando perguntas para as elas e elas foram respondendo, então a presença da criança está pelo áudio no trabalho, continuamos em conexão com elas e criamos a pergunta : O que é que vocês  fazem quando tem que esperar?, e foi muito legal porque as respostas vieram juntamente de encontro com o que estávamos pesquisando, que era a distração, o se entreter com o que está ao redor. E muitas crianças  responderam que quando tinham que esperar se distraiam, eles não sofrem. Foi meio que um contrato que fizemos com o não sofrimento, no sentido de não sofrer, mas nos distrair e viver o que está por aqui, no que é possível. Foi isso, e eu não sei se consegui te responder, porque está tão presente ainda, e estamos fazendo um segundo trabalho agora.

FB: Uxa, eu vou te fazer algumas perguntas. Mas antes da pergunta, uma observação, que acho muito legal assumir esse estado Zoom, e inclusive foi até uma escolha minha do doutorado.  Por mais que as coisas já estejam voltando, surgiu até a possibilidade de encontro com o artista e fazer uma gravação excelente, para mim não iria registrar o momento, essa tela faz parte, ela fala do retrato, do momento Zoom e para mim foi muito legal. E no início da sua fala eu ia te dizer para você tentar trazer essa Uxa artista e a Uxa diretora, que elas se confundem e você já trouxe isso, e isso foi muito legal, estamos em uma conexão. Você trouxe agora a preparação do grupo, e que foi feita virtualmente. Antes da pandemia como acontecia essa preparação de vocês?

UX: Olha trabalhamos muito com a prática um procedimento que faz parte do processo de criação, e como vamos organizando isso em nossa biblioteca/arquivo, em nosso corpo.

Já temos práticas muito sistematizadas para entrar e ativar a investigação e atualmente estamos conseguindo trazer mais material para essas práticas.

 Quando criamos “Breves partituras para muitas calçadas”  fizemos um contato mais aprofundado em uma pesquisa que era da Thais Ushirobira que na época era performer do Lagartixa e estava fazendo uma formação do Rolfing e conseguimos entender a dinâmica das fáscias, que criou muito sentido para nossa noção de corpo coletivo que se move em rede e foi muito interessante porque, sempre pesquisei muito a Eutonia e esse encontro com a pesquisa da Thais criou um desdobramento e uma potencialização nos estados de presença. Quando eu estou na direção, quando estou nesse lugar, a minha leitura é via o Sistema Laban. Mas as prática de ativação de corpo , e inclusive estou escrevendo um texto sobre isso,   foi se construindo ao longo do tempo, então temos várias práticas foram sistematizadas a partir dos processos de criação e também como cada Performance/obra  pede uma prática.

 Não trabalhamos em um formato tradicional: fazemos uma aula e começamos a criar. Partimos sempre de uma pergunta: O que aquele trabalho pede? Qual o corpo deste trabalho? E partir dessas perguntas vamos trabalhando com as nossas práticas e seus desdobramentos, buscando novos campos de investigação. Por exemplo, com o “Breves”, como a Thais Ushirobira estava fazendo a formação do Rolfing, e como já trabalhávamos com elástico, que é uma prática mais antiga: um grande elástico, em que nos sustentamos e vamos nos movendo e a cada micro movimento o elástico vai nos propondo deslocamentos, até entrarmos em um grande deslocamento. O elástico tem uma similaridade com as fascias

 Por trabalhamos em espaços públicos esse corpo coletivo que se desloca, faz parte de como acionamos, nos deslocamos e sustentamos um estado de presença em um espaço público.

 São práticas nossas muito antigas, de ativar estado de presença para criar pausas, sustentações nesse lugar que é imprevisível, porque eu não tenho luz, não  tenho a quarta parede, não tenho nada, e tenho muitas outras coisas. Então como construir isso nessa contenção, nessa presença para abrir um espaço que é um estado de tensibilidade, de um corpo que cria redes, sustenta redes e é elástico nesse sentido de mover-se para muitas direções , uma grande cinesfera em um mover em fluxo contínuo.

E quando fomos para o “Breves partituras para muitas calçadas ”  começamos a nos aprofundar mais nos procedimentos  do Rolffing, fomos organizando um roll de práticas.

Só que nesse contexto de criar virtualmente não coube. Acho que essa é a sua pergunta, porque por mais que conseguíssemos ativar esse estado de presença e nos  mover a partir do movimento do outro pela tela, mas não tínhamos elástico, nem espaço público, portanto era outro corpo. Por isso a Sheila Areas nos trouxe materiais  para uma pesquisa individual, mas que trabalhava com essa questão do corpo movediço, porque estávamos trabalhando com objetos, e também com essa proposição do Latour, o ator em rede, tudo está em rede, em relação, e com Manuel de Barros,  a partir do Poema Latas-Memórias Inventadas- A Infância-  , o quanto uma lata quando abandonada precisa se descamar e adentrar  até virar poesia e natureza.

 Foi nesse lugar e estado de corpo, que fomos  criando conexões  com os objetos, o quanto aquele objeto e mesmo meu corpo, precisa se descamar e também como estou em conexão/rede o tempo todo com tudo o que está na casa e no mundo.

Com isso, a prática foi para outro lugar, bem novo, que ativou sustentações de coisas que não podíamos fazer presencialmente , mas que já estavam em nosso roll, nosso repertório.

Agora estávamos indo por aquela perspectiva  para ativar lugares novos,  e criarmos uma nova prática, um novo campo de investigação para esse corpo, e isso aconteceu muito claramente, pois tivemos que buscar outras proposições/procedimentos  para ativar  um corpo que é o nosso, a nossa identidade, mas que está em uma espacialidade totalmente diferente do que estávamos habituades a criar  .

 

FB: Em relação à presença nessa virtualidade, como vocês viram e sentiram essa questão da presença, o conceito de presença?

UX: Foi muito interessante, porque são dois momentos. Por estarmos há muito tempo juntos, a presença se ativa muito rapidamente, acho que a presença tem uma coisa muito interessante, porque o querer estar é o que sustenta uma presença, e nós queríamos estar juntos. Eu acho que é isso o que sustenta uma presença, o querer estar, saber que está, e nós sabíamos das nossas condições, então nós nos sustentávamos super bem, não tivemos nenhum problema em relação a isso. Agora, o que foi muito interessante mesmo foi a experiência da residência, em que fizemos oito encontros, seriam dez, mas como tudo foi virtual nós diminuímos o número, e foi surpreendente. Havia mais de cinquenta e sete pessoas fazendo, e aconteceu uma coisa muito interessante nesse meio tempo. Eu dou aula no Célia Helena e na especialização da Eca, e coincidiu que os dois cursos aconteceram muito próximos, então eu fui criando dispositivos para entrar nessa relação e estava muito junto também com as experiências dos ensaios, então eu estava muito ativa e atenta a criar novas proposições. Por exemplo, eu comecei a criar proposições para os cursos e que até levei para a residência que se chamava “Aterrar para Mover”, porque já que estávamos em um grau de virtualidade tão grande que a percepção de peso muda, e eu também começava a propor que as pessoas desorganizassem completamente o espaço, virassem as cadeiras, andassem de costas, virassem mesas e empurrassem tudo, para transformar o espaço, para entrar em um outro tipo de relação, e isso foi muito interessante porque quando fomos do projeto para a prática da residência já havia uma prática organizada para acessar os corpos, e era impressionante, porque tudo acontecia, e não era mágica, mas parecia que era, porque as pessoas entravam e, claro, elas estavam com um interesse e necessidade de estar em movimento. Então foram práticas que foram se construindo e essas presenças foram se fortalecendo e que foram surpreendentes. Quando fizemos o compartilhamento com as crianças foi genial, porque elas super interagiram com o trabalho, dançaram, propuseram coisas novas. Então é muito interessante entendermos nessa relação da corporalidade e mesmo das nossas conexões neurológicas, a capacidade que temos de entender, nos adaptarmos e criarmos novos caminhos. Não é reinventar, nós criamos novos caminhos, e falando nesse contexto que estamos explorando, porque sabemos muito bem do grau de exaustão das crianças, professores, dos pais, da dificuldade de uma família de ter um ou dois celulares e ter que fazer as atividades das crianças e seus trabalhos. Esse recorte aconteceu e foi muito bom, mas sem, em momento algum, nos desconectarmos do grau de exaustão que todos estavamos vivendo e como lidar com isso.

Na oficina das crianças formas dinâmicas de relação foram estabelecidas para dar conta de tudo isso, então essa presença, de alguma forma, se redimensionou.

FB: Você já entrou em um campo que não tem como me distanciar, que é essa relação com o espectador, com o público, como se deu, e você já acabou trazendo. E para finalizarmos, o que você acha que fica para você, Uxa artista do Lagartixa deste período, o que ficará?

UX: Na verdade para mim é muito complicado dividir a Uxa cidadã, artista, diretora, pessoa, está tudo junto. Eu ainda não sei. Eu sempre digo que não sabemos ainda o que estamos vivendo, vamos saber daqui a um tempo. Ainda estou muito nessa presença desse lugar, porque é uma coisa que ainda não passou, ela passou em uma intensidade, mas ainda não sabemos em que isso vai dar se não estamos ainda em um lugar de imprevisibilidade. O que fica como um depoimento é que as invenções são possíveis, o respeito é fundamental, e que precisamos nos olhar no coletivo, foi a única coisa que ficou muito forte, e que já era. Para mim, como artista, educadora e pessoa isso sempre foi o que me levou para os lugares, mas eu vejo que talvez algumas pessoas devam ter “quebrado a perna” se buscaram antigas fórmulas como uma forma de adaptação, não sei se deu certo. Mas é um pouco também esse lugar de coragem que temos que ter de entender que é isso e não vamos sofrer, mas fazer. Vamos sofrer o que é possível porque sofrer além da conta levará ao lugar da imobilidade, e que não é o nosso lugar.

FB: Nossa, é muita coisa!

UX: E é bom, porque é uma coisa tão presente e ao mesmo tempo pensar em quantas coisas fizemos com o nosso corpo por medo, e eu ainda não sei se consegui elaborar tudo isso.

FB: E se depois você tiver algo relato interessante, um acontecimento engraçado, acho que isso seria interessante registrar.

UX: Aconteceu até algo engraçado, que foi um mistério, porque. Tinha um objeto que a Aline Bonamin - performer do Lagartixa- havia escolhido para trabalhar que era um peão, e esse peão desapareceu. Inclusive postamos no Instagram “procura-se um peão que fugiu de uma praça”, porque ninguém sabe onde foi parar o peão. Então era esse lugar em que estávamos, às vezes, como forma de desapego, a nossa memória ficou meio maluca por ter que prestar tanta atenção por onde andar, sentar. Ela teve que procurar outro objeto para pesquisar porque o peão foi para o mundo.

FB: Uxa, eu vou finalizar por aqui e quero agradecer muito a sua disponibilidade e a sua generosidade. Essa é a segunda entrevista, no total tenho agendadas dez entrevistas, selecionei dezenove artistas, e foi até uma pergunta do Fukushima como eu havia chegado até ele, e eu o respondi dizendo que há algum tempo eu estou de olho na cena paulistana da dança, mas fiz um retrospecto nos fomentados, um pessoal que ganhou o prêmio Denilto Gomes, também deu uma atenção para diversas estéticas, a questão artista solo e grupo, crianças, voltados para um público ou para o outro, centro e periferia, foi um apanhado em relação a tudo isso. Fica a minha admiração pelo trabalho de vocês, que bom ter este contato, estou muito feliz em ter essa oportunidade.

UX: Eu também fico muito feliz quando me chamam porque é uma forma de contribuir e estar presente, por falar em presenças.

FB: Se fazer presente na história, de alguma forma. E eu Flávia artista, que ainda estou afastada da cena e da dança, fico pensando como posso deixar esse meu estudo não só no papel, no arquivo, então pode ser que isso se desdobre em um documentário, alguma coisa que seja mais fácil, mais acessível.

UX: Faça isso, eu acho muito importante, porque todo material acadêmico acaba se retroalimentando, então como o outro pode estar com e formas de conexão com outros modos de conversar também, acho isso muito importante.

FB: Atravessar os muros da Universidade, do mundo acadêmico. Isso ainda está borbulhando e é uma inquietação minha, porque está vindo um material riquíssimo, já estou feliz com duas entrevistas, acredito que irá sair um material muito bacana.

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