O Corpo a infância e os moveres
Uxa Xavier
Esses três assuntos fazem parte de minha existência como artista profissional da dança, sendo que dois, criança e movimento integram o meu “corpo- biografia”.
Ser criança é antes de mais nada, estar envolvido, ser uma unidade. Quando brincam são corpo brincadeira, quando comem são corpo fome- alimento, quando desenham são corpo desenho, quando contemplam, são corpo que gravita em imagens, sons e espaços. Estar envolvido não significa estar alheio, distante, desligado ou mesmo alienado, a frase : ahh aquela criança vive no seu mundo..” diz muito sobre o envolvimento. Estar envolvido é estar presente, perceptivo ao mundo que lhe acolhe e envolve, é estar em conexão com o espaço/ corpo , “espaço topos” e o espaço imaginário.
Quando revisito meu corpo- biografia as sensações se atualizam e as lembranças resplandecem como um raio de luz numa noite escura ,um momento de encantamento, me lembro muito bem que adorava buscar espaços mínimos para me encaixar e por lá brincar de “ser solidão”, mas mesmo nesse meu envolvimento com o meu estar só... eu ouvia e percebia os passos, as falas das pessoas que habitavam a minha infância, e lá no meu mais precioso esconderijo, eu vigiava ... eu estava presente em minhas sensações e percepções do mundo ao qual eu pertencia e meu corpo esperto de criança “anotando tudo...”. Sinto que meu corpo é ainda meu melhor caderno de lembranças....
Por essa razão , ou melhor, por essa experiência que para mim é viva e muito preciosa ,que filtro meu olhar quando estou com crianças, pois sei que a experiência do movimento/ envolvimento ainda é muito presente nelas, e seus corpos ainda não possuem regiões de surdez como nos adultos, tudo é corpo , nada está obscuro.
Quando comecei a trabalhar com crianças fiz um juramento (parece um pouco dramático, mas naquela época , eu era bem jovem...) que até hoje se mantém vivo, e aqui conto em qual contexto esse juramento aconteceu. Eu dava aula em pré escola e o que eu mais gostava de fazer é ficar no recreio observando as múltiplas e simultâneas coreografias que iam surgindo no espaço, eu realmente me transportava, naquela época eu ainda não entendia essa noção de *transporte como um meio de fruição em dança, ou a qualquer evento que aconteça diante de
nós e como nosso corpo reage. Meu corpo ia junto, nas mais curiosas possibilidades, onde as forças motoras e imaginárias criavam significados no corpo com seus ritmos, intensidades em fluxo no espaço. E assim me jurei que jamais iria desprezar o conhecimento de uma criança e que eu sempre manteria o estado de curiosidade e porosidade para estar junto à elas. Esse Juramento ao longo do tempo, foi se transformando em meus princípios éticos: como estabeleço minha relação e de como permaneço porosa às informações que recebo delas e
principalmente como eu elaboro e transformo essas informações. Dar aula é se relacionar, impossível não sair de uma aula sem estar transformada, tocada, provocada instigada, realizada , frustrada etc e tal. E dar aula de dança é somar corpo conhecimento, com corpo poroso atento e presente. Nosso corpo possui muitas camadas onde cada uma se entrelaça, mas que mantém suas singularidades, temos o corpo biológico que envolve toda nossa estrutura fisiológica e anatômica, e também nosso corpo subjetivo, onde transitam nossas percepções
sentimentos e sensações, essas camadas tramam o nosso tecido e estrutura corporal , somos tudo isso e justamente por sermos tudo isso, e que quando estamos com as crianças esse “tudo isso” precisa estar vivo em nossos corpos criadores e conscientes. Por essa razão que nomeio meu trabalho: ” Dança contemporânea para crianças” , pois meu saber e minha experiência em dança é a trama de muitos conhecimentos, e que a dança se faz no corpo, ela como sujeito e objeto constituindo uma organização do repertório de movimentos integrados as percepções e imaginário, que em suas infinitas combinações criam significados, e não a repetição através de meu corpo-
movimento, há muitos anos inventei o nome “professor espelho” para explicar o que eu não era.
Quando estou dando aula, meu olhar scaneia o corpo- movimento de meus alunos, busco entender aquele modo de estar em movimento no mundo que lhe é único. Meu corpo “estala” de atenção, busco me conectar em suas reações físicas: o prazer, o desafio em descobrir a chave para que um novo gesto -movimento faça parte da dança que está criando e vivendo em sua integridade.